Ensino Religioso
29/07/2008
Além da igreja e da academia
Antonio Carlos Ribeiro*A teologia tem superado os espaços que conquistou da Idade Média até a modernidade. O saber que se desenvolveu por séculos entre o altar e a cátedra alcançou outros espaços, considerados laicos, nas últimas décadas. Hoje, além da igreja e da academia, teólogos são lidos, ouvidos e convidados para assessorias, conferências e mediações, falam das relações com a economia, a cultura e a vida em sociedade. A Teologia se tornou Pública. As Faculdades EST e o Instituto Humanitas/Unisinos promoveram o Simpósio Internacional sobre Teologia Pública na América Latina, para falar do evento e suas implicações, o Prof. Dr. Rudolf von Sinner, Pró-Reitor de Pós-Graduação das Faculdades EST, concedeu a entrevista abaixo a Antonio Carlos Ribeiro*.
Como surgiu a articulação que resultou na organização do Simpósio Internacional de Teologia Pública?
A Faculdades EST é membro fundador da Rede Global de Teologia Pública, criada em maio de 2007 na cidade de Princeton, nos Estados Unidos. Vinte e cinco centros de pesquisa acharam por bem reunir-se para, em tempos de globalização, trocar idéias e fazer parcerias sobre o papel da teologia, no caso cristã, no espaço público. Há membros da Ásia, da África, da Oceania, da Europa, das Américas. O termo "teologia pública" originou-se nos Estados Unidos nos anos 1970, mas vem sendo revitalizado mundialmente em tempos de necessidade de uma reformulação teológica. Na África do Sul, por exemplo, ajuda para articular uma teologia pós-Apartheid. Na América Latina, poderia ajudar a agregar os intuitos fundamentais da Teologia da Libertação com outros aportes (inclusive evangelicais e pentecostais) para articular uma participação da teologia no espaço público em tempos de democracia e de um crescente pluralismo religioso. Uma vez que, aqui, o termo é novo - com exceção do programa de teologia pública do Instituto Humanitas Unisinos, fundado em 2001, que foi parceiro nesta empreitada - achamos por bem termos um simpósio que se propusesse, precisamente, a explorar o conceito, de forma interdisciplinar (no caso entre teologia, filosofia e antropologia) e internacional (com participantes da África do Sul e dos Estados Unidos, representantes da dita Rede Global). Também lançamos um Instituto de Ética e Teologia Pública que pretendemos instalar na EST.
Que eixos temáticos uniram interesses acadêmicos, teológicos e pastorais de cristãos ou de uma Faculdade luterana e de uma Universidade jesuíta para a promoção do evento?
David Tracy publicou, em 1981, seu livro A Imaginação Analógica (traduzido e publicado pela Editora Unisinos, na série Teologia Pública), onde destaca os três públicos do teólogo (e acrescento: da teóloga), ou seja, a igreja, a sociedade e a academia. Portanto, é de fato uma articulação que junta preocupações pastorais, teológicas e acadêmicas. Refletimos isto, de certa forma, nos eixos temáticos de Teologia e Sociedade, Teologia e Universidade, e Teologia e Cultura. Em todos os momentos, foi visível uma preocupação comum no âmbito da Rede Global, que quer fomentar uma atuação "glocal" (global e local ao mesmo tempo) das igrejas e da teologia, mas também as especificidades do contexto brasileiro - em termos de cultura, pluralismo religioso, legislação religiosa, ensino religioso, conflitos religiosos e assim por diante, todas áreas que carecem de uma análise rigorosa e crítica e de respostas criativas.
Que parâmetros podem reger o debate de temas da religião no espaço público?
Penso que são precisas duas qualidades principais por parte dos teólogos e das teólogas: Humildade e ousadia. Existem igrejas que olham quase que exclusivamente para o além e esquecem o aqui e agora, outras que se exercitam em introspecção, e outras que querem usurpar o espaço público, num claro projeto de hegemonia. No caso das primeiras, é preciso encorajá-las para darem sua contribuição com firmeza e convicção, sem vergonha, mas também de forma qualificada. No caso das últimas, é preciso instigar restrição e autocrítica, pois ainda que a motivação da atuação das igrejas no espaço público seja religiosa, seu objetivo não pode ser corporativista, no interesse apenas da própria instituição, mas é preciso buscar o bem comum. Por parte da academia e da política, bem como da sociedade civil, penso ser necessária mais abertura para o debate aberto da religião no espaço público, pois há muita resistência a enfrentá-lo e prefere-se, às vezes, tratar o assunto como se fosse algo exótico. Contudo, é evidente que a religião não desapareceu do espaço público como previa a hipótese da secularização na esteira da modernização, bem ao contrário, está até presente demais em alguns aspectos. Talvez por esta razão estou percebendo uma crescente abertura em alguns setores acadêmicos e públicos para ampliar o debate e, inclusive, convidar teólogos e teólogas para participarem, querendo saber mais das posições e reflexões internas das igrejas cristãs. Acrescento que de modo geral, uma teologia pública não pode existir senão sob pressuposto do estado laico - no sentido de não favorecer nenhuma religião ou igreja específica, mas sem rejeitar a participação de religiões na busca do bem comum -, da liberdade e do pluralismo religiosos e dos direitos humanos.
Dois estados brasileiros, a Bahia e o Rio de Janeiro, implantaram o Ensino Religioso Confessional, desconsiderando a Constituição Federal de 1988. A legislação do Rio de Janeiro prevê que se o professor "perder a fé", pode ser demitido. Um dilema teológico e um jurídico: Como alguém vai atestar que uma pessoa "perdeu a fé"?, e se for possível, como um Estado laico vai demitir um funcionário por ter "perdido a fé"?
Temos um caso exemplar aqui para um debate público envolvendo a religião. Merece uma reflexão aprofundada e conhecimento amplo dos elementos em jogo. Não sou especialista no assunto, mas sua pergunta me incentivou a pesquisar nos documentos pertinentes. A Constituição Federal, em seu artigo 210, não diz mais do que deve haver ensino religioso no ensino fundamental público, de matrícula facultativa. Já a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Nacional (LDBEN), de 1997, diz que tal educação deverá assegurar "o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil" e declara "vedadas quaisquer formas de proselitismo" (Art. 33), enquanto a formulação anterior (de 1996) previa uma opção entre ensino "confessional" e "interconfessional". Uma vez que o ensino fundamental está a encargo dos estados e municípios, ouvida - entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso -, depende da negociação entre os sistemas de ensino e tal entidade civil a forma como este ensino deve ser implantado. Além de alguns estados, como Bahia e o Rio de Janeiro, terem optado pelo ensino confessional, o que considero uma chance perdida para contribuir com o conhecimento de e o respeito mútuo entre religiões, não está claro quem pode efetivamente ser professor de ensino religioso. Não existe licenciatura em teologia (o MEC até hoje não tem autorizado esta modalidade), e ainda há pouca licenciatura em ciências da religião. Muitas vezes são pessoas pouco preparadas que estão dando essas aulas, e em muitos lugares elas nem ocorrem, apesar da prescrição constitucional. Na África do Sul, para poder comparar, trata-se de um ensino pluri-religioso que informa sobre o fenômeno e a diversidade das religiões. Além disto, as escolas cedem um espaço para a prática religiosa (oração, culto, etc.) das religiões presentes no lugar específico, a critério de um conselho das religiões. Conforme nosso colega da África do Sul, Prof. Nico Koopman, funciona bem. Lá, não há dúvida de que as religiões foram importantes na superação do apartheid e que são imprescindíveis na re-construção da nação.
A legislação do Rio de Janeiro pode ser criticada por vários elementos, mas a meu ver não é inconstitucional nem, em princípio, contra a LDBEN. Existem outros países onde o Ensino Religioso, também facultativo, é confessional e onde os professores são fornecidos (e pagos, eis uma diferença) pelas igrejas e obedecem às regras destas. No cantão de Basiléia, na Suíça, a longa convivência entre reformados e católicos, junto com a falta de dinheiro para custear dois professores em cada escola, tem feito com que este Ensino seja ecumênico. No Brasil isto seria mais complicado devido à maior diversidade religiosa (especialmente cristã) e à acirrada competição entre as igrejas e religiões. Pode-se argumentar que o fato de ser facultativo já atende suficientemente à liberdade religiosa, enquanto a mesma liberdade pode fundamentar a oferta de um Ensino Religioso: liberdade não garante apenas a opção pessoal, mas também a possibilidade do exercício público dela. Por outro lado, um ensino não confessional até poderia ser declarado obrigatório, uma vez que se constituiria em disciplina informativa sobre um tema considerado - se for o caso - intrínseco à humanidade. Poderia ser chamado também de filosofia e cultura; ética, filosofia e religião; ética e cultura ou semelhante. Dado a forte presença de religiões em nosso país, é imprescindível que haja algum tipo de informação sobre as religiões em sua diversidade, e o fenômeno religioso enquanto tal. Temos então uma variedade de opções que podem e devem ser discutidas, com implicações sobre a natureza da religião, seu lugar na sociedade e a relação do Estado laico com as religiões, todas questões que continuam em aberto.
A lei do Rio prevê o credenciamento do/a professor/a pela "autoridade religiosa competente", o que pode implicar que também poderia haver descredenciamento. De certa forma estaria na lógica da idéia do ensino confessional. Cabe, portanto, ao próprio legislador mudar a lei para dar outros rumos, ouvida a sociedade, religiosa e não religiosa.
Nas obras recentes de Leonardo Boff, vemos que pela experiência, respeitabilidade e linguagem, ele conseguiu abordar questões da sociedade e estabelecer diálogo frutífero. Essa situação pode ampliar-se com o debate sobre Teologia Pública?
Umas semanas antes do Simpósio, recebemos na EST o próprio Leonardo Boff, a quem outorgamos o título de Doutor honoris causa, precisamente por ser um teólogo público que tem conseguido comunicar a teologia a um público muito além das igrejas, em sua preocupação ecumênica, de justiça social e de ecologia. Durante uma semana, discutimos com ele seu relacionamento com a teologia protestante, nomeadamente luterana, o que o trouxe de volta para uma discussão entre teólogos e teólogas - desde sua "auto-promoção ao estado de leigo" e a saída da ordem franciscana (em 1992), ele interage muito mais com a sociedade mais ampla do que com a teologia acadêmica. Gostou de fazê-lo por um período e demonstrou, novamente, sua enorme competência teológica. Mas, realmente, tem um carisma especial para ser um teólogo público, podendo servir como um exemplo de uma teologia pública em ação concreta. Quem já viu um público de 10.000 pessoas, no Fórum Social Mundial, rezarem em conjunto a oração de São Francisco de Assis pela paz - cristãos, budistas, agnósticos, ateus, todos juntos? Com Leonardo Boff, sua credibilidade e respeitabilidade, isto foi possível, sem vergonha nem imposição de uma religião.
Quais os avanços da teologia e das ciências da religião ao conquistarem seu lugar na Universidade e no mundo acadêmico?
A universidade européia nasceu com a teologia, ainda que propiciou um estudo mais amplo fora do âmbito estritamente religioso, possibilitando inclusive o desenvolvimento de um pensamento crítico em relação à religião - lembremos apenas o Doutor Martim Lutero! No Brasil, pela política portuguesa e depois por atritos internos, a universidade nasce muito tardiamente, com grande carga positivista e anti-religiosa. Até 1979 não se ensinava, na Universidade de São Paulo, nem sequer filosofia medieval pelo medo de uma re-entrada da religião, elemento indispensável a ser tratado em relação àquela época. Até hoje há muitos cientistas para quem a religião, especialmente a cristã e, dentro dela, o catolicismo romano (mas muitas vezes nem se faz esta diferenciação), seria por definição retrógrada, anti-científica e impostora. Embora haja, evidentemente, exemplos históricos e contemporâneos para tal, é um julgamento generalizante e pouco científico.
Portanto, o lugar até certo ponto conquistado pela teologia e as ciências da religião no mundo acadêmico brasileiro é de grande importância. No nível da pós-graduação, contamos hoje com nada menos de 14 programas nesta área, sendo dois considerados de excelência pela CAPES. Além disto, há estudos da religião na antropologia e na sociologia, além da história e da filosofia. Penso que, contudo, o diálogo da teologia com estes campos de saber poderia ser mais intensivo, reconhecendo-se que a teologia tem capacidade de reflexão autocrítica e argumentativa, desde que garantida precisamente a liberdade científica por parte das mantenedoras. As ciências da religião já são mais descritivas por natureza. Considero muito significativo que o bacharelado em teologia também está sendo reconhecido pelo MEC, desde 1999, assim não apenas reconhecendo a teologia como legítimo campo de saber, mas exigindo uma reflexão (auto-)crítica e científica da teologia com base em argumentos, em vez de decretos. Isto é muito importante, inclusive para a auto-compreensão das igrejas e religiões. De fato, um grande número de pastores/as, sacerdotes e outros/as teólogos/as está buscando a integralização, o que oferece uma oportunidade inédita de fomentar o debate crítico, científico e ecumênico.
Que horizonte de ganho real para a sociedade o sr contempla quando a teologia e as ciências da religião dialogarem com as comunidades científica, religiosa, econômica e política, além de outros setores da sociedade civil?
A religião é um conjunto de mito, rito e ética que orienta a vida no mundo, tendo como referência última um poder ou uma dimensão transcendental. Esta definição, como qualquer uma de religião, é questionável, mas me parece suficientemente ampla para facilitar um diálogo. As religiões, por sua vez, são conjuntos históricos de pessoas norteados pela especificidade de uma religião, com algum grau de organização, definição de conteúdo e distribuição de tarefas. Sendo assim, elas influenciam as pessoas que a elas aderem também no seu comportamento diário. A teologia, ao menos na tradição cristã, é uma explicitação da fé para fins de comunicação para fora (academia, sociedade civil, outras religiões, economia, política...) e de reflexão crítica para dentro da comunidade religiosa. As igrejas brasileiras ou setores delas, nomeadamente a Igreja Católica Romana - mediante as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e o apoio da hierarquia à oposição contra o regime militar - têm alcançado notoriedade mundial por terem sido o berço da sociedade civil nascente, a partir da "distensão" e, depois, da "abertura" na transição democrática. Outras igrejas, sem muito discurso de transformação social, estão transformando e restabelecendo vidas, tornando "não-pessoas" (presidiários, dependentes químicos, pobres em geral) em cidadãos e cidadãs com auto-estima. Fazer esta contribuição evidente para dentro e para fora, e fundamentá-la teologicamente, é tarefa importante da teologia e das ciências da religião, que devem fomentar a própria colaboração em prol do bem comum. O caráter ecumênico e científico do estudo acadêmico facilita, assim estou convicto após experiências em cursos de integralização do bacharelado em teologia, está contribuindo para a convivência pacífica, o diálogo e a cooperação entre as igrejas e religiões.
A variedade da temática das comunicações apresentada no evento traz um leque de frentes de diálogo. Quais suas expectativas, como organizador deste primeiro Simpósio Internacional no Brasil?
Achei muito rica a amplitude das comunicações, que apesar da diversidade se empenharam em evidenciar sua conexão com o tema geral. Já que o Simpósio foi de caráter deliberadamente exploratório, é muito satisfatória e gratificante a contribuição qualificada de mestrandos/as, doutorandos/as e professores/as para o debate. As comunicações já foram publicadas em CD-ROM e pretendemos publicar as palestras e conferências em livro. Também tivemos duas sessões sobre "parceria em pesquisa", com excelentes sugestões para definir os temas-chave para o projeto em conjunto com os colegas da África do Sul, que muito têm em comum com o Brasil. Os colegas se sentiram em casa nesta sua primeira visita ao Brasil e à América Latina, apesar da dificuldade lingüística. Temos alunos/as da pós-graduação e até um colega doutor que fará um pós-doutorado aqui na EST sobre teologia pública. O futuro Instituto de Ética e Teologia Pública deverá fomentar ainda mais este debate. Estou animado e acho que temos contribuições significativas a serem dadas nesta contribuição da teologia no espaço público.
*Teólogo luterano e jornalista, doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.