Disciplina - Ensino Religioso

Ensino Religioso

10/03/2009

Os sem religião no Censo nacional: investigações e ponderações acerca da ausência de pertencimento religioso no Brasil

Denise dos Santos Rodrigues*
O acompanhamento dos resultados dos recenseamentos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) mostra que foi na década dos 60 que a categoria de pessoas que se identificavam como sem religião passou a figurar nos seus quadros, representando 0,5% da população, desvinculada daquela categoria dos que não declaravam sua religião.  Em 30 anos a aceleração de seu ritmo de crescimento a fez  saltar dos 0,8% em 1970 para 4,7% da população nacional no Censo de 1991 e 7,3% no de 2000. Paralelamente os evangélicos passaram dos 4% na década dos 60 para 9% em 1991 e 15,6% em 2000, enquanto os católicos, grupo majoritário, entraram em declínio nesse mesmo espaço de tempo, deixando a marca dos 93% para 83,8% e, por fim, para os  73,9% em 2000. Enfim, os sem religião foram incluídos como uma categoria residual, que congrega todos aqueles que não se encaixam no perfil de nenhum grupo religioso, a qual evoluiu rapidamente, à primeira vista confirmando as clássicas teorias da secularização. Entretanto, dados empíricos de várias fontes apontam para outra realidade, além do que poderia ser interpretado como reforço da descrença: a afirmação de indivíduos que fogem do compromisso com as instituições religiosas, a despeito de suas possíveis convicções. Reconhecer, portanto, que a religião mudou de lugar dentro da sociedade contemporânea pode ser o primeiro passo para estudar as causas desse deslocamento e tentar explicar porque floresceram tantas mentes que se definem como sem religião.
Entrevistas com 70 indivíduos residentes na Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro que se identificavam como sem religião[1] mostraram que, ao contrário do que é sugerido pela classificação do IBGE, a categoria dos sem religião não deve ser interpretada como uma massa homogênea de ateus e agnósticos. Trata-se de um grupo variado, composto por tipos diferentes que, se por um lado têm em comum a ausência de pertencimento institucional, por outro percebem o transcendente, aqui compreendido como Deus, uma força superior ou afins, de forma diferenciada. Nessa perspectiva, aparentemente devido a limitações impostas pela metodologia utilizada, a categoria censitária dos sem religião disponibilizada pelo IBGE não parece traduzir, com fidelidade, as transformações do panorama religioso brasileiro das últimas décadas. A denominação “sem religião” pode, portanto, por sua abrangência, ser interpretada – como muitas vezes tem sido – como uma expressão do crescimento do ateísmo, o que não representa a totalidade do grupo.
Os 32 (45,75%) ateus ou agnósticos identificados no total de informantes eliminavam a religião junto com a imagem de Deus ou qualquer outra força superior das suas explicações para os eventos da vida[2]. Aqueles que se distinguiam desse grupo, 38 (54,3%) manifestavam algum tipo de relação com o transcendente, descartando somente vínculos com  instituições religiosas. Entre eles estavam tanto aqueles que nunca tiveram religião ou formação religiosa, quanto os que se desligaram de instituições religiosas em algum momento da vida, pelos mais diversos motivos. Se alguns confiavam que o mundo e o indivíduo são pura matéria, ambos sujeitos às deteriorações do tempo e dependentes dos avanços da Ciência, outros não rejeitavam a idéia de um ente sobre-humano monitorando o universo, mas sem laços com instituições religiosas, que julgavam desnecessárias. Eles deslocavam, dessa forma, a sua relação com o sagrado para a esfera privada, estabelecendo uma relação muito particular com o divino, por vezes mais próximo da natureza do que dos personagens bíblicos. Muitos deles percebiam Deus como uma energia integrada ao indivíduo. Essa energia natural estaria presente em todas as coisas e lugares, comportando-se de forma negativa ou positiva, como um átomo, impulsionando as coisas e pessoas para um lado ou outro, em sintonia com o universo, desenhando assim o destino de cada um. Ou seja, para um determinado grupo de indivíduos, tudo estaria sujeito a oscilações energéticas, as quais atuariam como uma força motriz responsável pela origem e evolução do mundo. Esse raciocínio parece se aproximar tanto de uma visão orientalizada, como será mais bem explicado adiante, quanto de uma perspectiva cética montaigniana, segundo a qual o curso da vida é construído por uma sucessão de acasos incontroláveis.
Certos indivíduos com religiosidade pareciam perceber o impulso religioso como um elemento constitucional da natureza humana, relegando a religião institucional à condição de veículo opcional para expressão pública da crença. Alguns deles chegaram mesmo a afirmar que tinham sua própria “religião”, por vezes ressignificando a imagem de Deus e reinterpretando o sentido de religião, descolando-a de templos e igrejas, os quais não julgavam necessários. Eles alegavam, como diz Luciano, 32 anos, que o importante é “ter religiosidade e não religião”.
Georg Simmel (1935) em sua abordagem da situação religiosa do indivíduo moderno estabelece uma diferença entre os termos religião e religiosidade. Enquanto o primeiro parece referir-se a uma estrutura institucional – aqui compreendida como a organização das várias igrejas, denominações e movimentos –, o segundo traduz uma característica individual, uma disposição interna, não necessariamente vinculada a instituições. Para o autor, certos indivíduos são movidos por uma natureza religiosa, sem a necessidade de uma instituição para intermediar sua relação com o sagrado e com o mundo exterior[3]. Com isso, ainda que o indivíduo vivesse isolado numa ilha, sem escutar palavra ou conceito algum sobre Deus, procederia da mesma forma porque sua alma e seu corpo funcionam religiosamente (Simmel, 1935, p.9). Já o indivíduo de religiosidade débil ou nula, no qual o religioso não determina o processo vital como forma imanente, não percebe outro modo de existência religiosa que não seja aquele do dogma. Ele necessita da religião institucional porque seu temperamento não é religioso (Simmel, 1935, p.20). Embora o argumento simeliano sobre a existência de religiosidade constitucional não seja absorvido por outros estudiosos, que consideram a interferência de fatores externos, como, por exemplo, a educação – e não internos – nas escolhas do indivíduo no que tange à esfera da religião, a noção de religiosidade, como apresentada por este autor, parece se aproximar do discurso de alguns entrevistados, como Marcelo, que disse que exerce seu “sentido e impulso de religiosidade, mas não dentro de uma religião constituída e institucionalizada”.
Os conceitos de religiosidade e espiritualidade já foram discutidos por vários autores das diversas áreas, entre os quais Fereshteh Ahmadi (2006: 51-73), que estabeleceu os seus limites para aplicá-los nas suas pesquisas. Ele estudou, no campo da religião e saúde, a relação entre religião, religiosidade e espiritualidade no enfrentamento de doenças graves por pacientes na Suécia[4]. Ele distinguiu religião das outras formas, definido-a como um fenômeno institucional e coletivo[5], enquanto a espiritualidade e a religiosidade estariam reportadas às crenças e práticas individuais, não necessariamente atreladas a instituições. Mas ele também estabeleceu a distância entre essas duas últimas noções. Para Ahmadi, o uso termo religiosidade é mais restrito, vinculado à religião institucional, enquanto espiritualidade, mais subjetivo, com um alcance maior, podendo inclusive indicar a busca de significados para a vida sem nenhuma fé, sem mitos, lendas ou superstições. A espiritualidade, portanto, pode ser praticada tanto dentro quanto fora do contexto institucional religioso, em consonância com Paul Heelas (2001) em seus estudos sobre as transformações no campo da religião na modernidade.
Na sua tentativa de estabelecer uma diferenciação entre o que seria a religião e a espiritualidade, Paul Heelas explicou que, enquanto a religião pode ser definida segundo a obediência a um Deus transcendente e a uma tradição, que é a mediadora de sua autoridade, a espiritualidade se apresenta como a experiência do divino imanente na vida. Sendo assim, o que aflora nos territórios, mais do que a tradição religiosa, é a espiritualidade, referida à experiência pessoal e interior com o sagrado. Essa articulação mais evidente com a espiritualidade está presente principalmente entre os movimentos de Nova Era (Heelas, 2001:361), o que pode ser concebido como uma espécie de revolução espiritual. Segundo o autor, toda a espiritualidade vivida na Nova Era, que é destradicionalizada, se consolida no interior de cada um, no que ele chama de “vida verdadeira”. Essa busca de uma espiritualidade vai, ainda, ao encontro, em parte, do modelo proposto por Colin Campbell (1997:5-22) em sua teoria da orientalização do Ocidente. De acordo com ele, o mundo moderno vem passando por uma transformação revolucionária, despertando uma nova consciência ética nos indivíduos, mais tolerante com as várias verdades. A orientalização do Ocidente consiste na importação de valores e crenças do Oriente, que são incorporadas à rotina ocidental. Isso inclui não só variedades culturais, mas também religiosas e filosóficas, transformando hábitos e práticas quotidianas. Emerge, a partir daí, outra visão de mundo, onde homem e natureza se harmonizam. Mente e corpo precisam estar em equilíbrio e o homem deve passar pela experiência do espiritual para alcançar a paz interior e universal.
Em geral, o termo religiosidade é utilizado num sentido mais estrito, por vezes vinculado à religião institucional, aqui no sentido durkheimiano (Durkheim, 1989:77), enquanto espiritualidade indica mais precisamente uma experiência individualizada do sagrado, o que pode implicar, conseqüentemente, numa distinção do problema religioso do espiritual. Convém ressaltar que, para Durkheim, as crenças religiosas são sempre comuns a uma determinada coletividade, constituindo uma unidade em comunhão de idéias. Elas fazem com que os indivíduos sintam-se ligados uns aos outros pelo que o autor denomina de “fé comum”; mais especificamente pelo compartilhamento de um mesmo entendimento acerca do que é sagrado ou profano.  Essa coletividade “faz profissão de aderir e de praticar os ritos ligados a elas” (Durkheim, 1989:75-6), relação da qual deriva o conceito durkheimiano de igreja, que parece ser o que mais se aproxima da noção de religião, entendida aqui como vínculo institucional. A despeito das distinções elaboradas pelos autores, neste trabalho não separo religiosidade de espiritualidade, tendo optado pela noção de religiosidade, inspirada nos discursos dos entrevistados, como expressão de uma crença num poder transcendental descolado de instituições religiosas. Sendo assim classifico ateus e agnósticos como indivíduos de tipo sem religiosidade enquanto os demais, que expressam algum tipo de relação com Deus ou similar como indivíduos com religiosidade.
O sentido de ser sem religião no mundo contemporâneo
Embora ainda sejam poucos os trabalhos sobre os sem religião (Fonseca, 2000, 1999; Novaes, 2004, 2006; Fernandes, 2006), de fato, essa percepção de um grupo diversificado, escondido sob um único indicativo percentual, já foi sugerida por outros pesquisadores, que também reconheceram os sem religião igualmente como indivíduos descolados das instituições religiosas. Em suas avaliações das mudanças reveladoras do campo religioso brasileiro, por exemplo, as sociólogas Mariz e Machado (1998:36) já alertavam que aqueles classificados pelos recenseamentos como sem religião, “não podem e não devem ser confundidos com ateus ou descrentes da existência de Deus”. Na mesma direção, em sua interpretação do Censo 2000, Jacob (2003, p.115) ratificou que “o fato de um indivíduo se declarar sem religião não significa, ipso facto, que ele seja ateu, isso porque uma parcela daqueles que se declaram sem religião, acredita em Deus sem participar, no entanto, das instituições”. Nesse sentido, se os sem religião podem ser compreendidos, de um lado, como um agregado de indivíduos aparentemente secularizados, de outro também podem ser representados por indivíduos aparentemente dessecularizados nos termos de Berger (2001), sugerindo que, na contemporaneidade, a evolução de uma categoria que poderia ser percebida como uma massa de descrentes também congrega indivíduos que expressam sua religiosidade ou espiritualidade, reinterpretando os conteúdos religiosos de uma forma muito particular, desinstitucionalizada.
Nos termos de Berger (1985), a secularização pode ser percebida como a perda de poder e plausibilidade da instituição religiosa na sociedade moderna. Esse processo pode se concretizar tanto no âmbito individual, através da secularização das consciências, quanto no nível societal, acarretando o enfraquecimento das instituições religiosas, das quais o indivíduo se desvincula. É a perda de status da igreja cristã na história da sociedade ocidental moderna, separada do Estado. Ou, ainda, um processo socioestrutural onde os conteúdos religiosos são subtraídos da vida pública, o que também compreende o terreno das artes, filosofia e literatura, abrindo espaço para o predomínio da Ciência. Essa desobrigação da religião no espaço público se reflete no terreno subjetivo, permitindo, por conseguinte, a secularização das mentalidades.  Embora o indivíduo receba influências de seu meio, a secularização de uma consciência individual não está diretamente vinculada à vertente societal (Berger, 2001:10). O processo de secularização não ocorre da mesma forma e ao mesmo tempo em todos os lugares e com todos os indivíduos. Ele emerge, ou não, em certos grupos e lugares, de acordo com cada contexto e suas influências; e nem atinge a todos, mas a certos indivíduos, diferentemente. Em uma sociedade, a secularização pode ser verificada em poucos ou nenhum indivíduo ou, ainda, em um indivíduo, mas não obrigatoriamente no seu grupo.
Se inicialmente para Peter Berger e outros autores, a secularização parecia se apresentar como o futuro implacável da modernidade ocidental, adiante a observação de fatos históricos recentes os fez constatar que nem todo conteúdo religioso sumira da sociedade moderna, dita secularizada. Alguns grupos confessionais se fortaleciam, o que levou Berger a propor a teoria da dessecularização, destacando os equívocos na teoria da secularização. Embora algumas instituições religiosas tenham perdido o poder e a influência em muitas sociedades, crenças e práticas religiosas permaneceram na vida das pessoas, o que indica que a modernidade não traz consigo, compulsoriamente, o declínio das religiões (Berger, 2001:10-17). Assim, num mundo que aparentemente caminhava para a secularização, emergiram novas crenças e grandes explosões de fervor religioso, ao lado de instituições religiosas que prestam serviço social para ocupar os espaços não preenchidos pelo Estado. Sobreviveram e floresceram comunidades religiosas que não tentaram se adaptar às supostas exigências do secular.  A partir dessas constatações o autor conclui que a velha teoria da secularização não é uma unanimidade num mundo globalizado. Ela vale em alguns lugares, mas não em outros, funciona com alguns tipos, mas não com outros.  Para ele, salvo exceções, o mundo atual é “massivamente religioso, não é em absoluto o mundo secularizado que previam tantos analistas da modernidade” (Berger, 2001:16). Então, o que parece ocorrer de fato, nesse cenário interligado, onde o local se dilui no global cheio de incertezas, é uma “mudança no lugar institucional da religião” e, daí, a interação de forças secularizantes e contra-secularizantes (Berger, 2001:14).
Nesse contexto, nasce um indivíduo autônomo, reivindicando um conjunto de liberdades adquiridas ao longo do tempo, apto para administrar questões de ordem religiosa como melhor lhe parecer. Percebe-se como senhor de sua vontade, comprometido prioritariamente com a sua própria consciência, encarando a religião como uma escolha particular. Portanto, se há alguns anos, para certos indivíduos poderia mostrar-se constrangedor, excludente, não integrar a maioria religiosa de seu país, para outros, posteriormente, esse pertencimento pode ter se tornado sinônimo de mentalidade atrasada, de baixa intelectualidade. Hoje, num cenário internacional plural, com os braços alongados pela globalização, onde é possível o intercâmbio mesmo entre as culturas mais longínquas, a expressão independente da religiosidade ou da espiritualidade parece se apresentar como uma opção entre as varias alternativas disponíveis. O indivíduo permite-se, assim, transitar e experimentar as práticas do grupo religioso que mais lhe convém ou identificar-se como um livre pensador. Essa condição atual também pode ser analisada à luz da teoria de Richard Sennet (1998, p.15-6), que reflete sobre a onda intimista das sociedades contemporâneas, onde o indivíduo transfere a vida da esfera pública para a privada. Segundo o autor, a atualidade é marcada por um processo de erosão da vida pública, ocasionado, sobretudo, pelo seu deslocamento para a esfera privada e, desta, para a íntima. A palavra intimidade ganhou destaque no mundo contemporâneo, onde a pessoa desloca suas atenções, por exemplo, da família para seu próprio eu, distanciando-se cada vez mais do que está ao seu redor (Sennett, 1998, p.15-6). Então, ela já não está preocupada com sua participação na vida em sociedade, mas concentrada em suas próprias emoções e história e, dessa forma, acaba se refugiando, se isolando, guiando-se pelo que o autor chama de código narcisista. Afloram então, um sentimento obsessivo, uma preocupação excessiva com a projeção do indivíduo, o que tem conseqüências sociais e pessoais como a limitação da participação na vida pública e a fuga dos compromissos (Sennett, 1998, p.22), principalmente pelo medo constante de atrair opiniões e gerar acontecimentos desagradáveis. Nessa ótica, o processo de desinstitucionalização, aqui evidente na esfera religiosa, pode ser decorrente, entre outros os motivos, do deslocamento da vida social para a esfera privada, inibindo manifestações públicas de emoções, opiniões, de religiosidade. Trata-se de um processo de retração, que Sennett (1998, p.19) justifica da seguinte forma: "o mundo dos sentimentos íntimos perde suas fronteiras; não se acha mais refreado por um mundo público onde as pessoas fazem um investimento alternativo e balanceado de si mesmas". Então, o indivíduo se retira das associações, das instituições, recolhendo-se ao espaço mais íntimo, longe do grupo, onde ele sente-se à vontade inclusive para travar um diálogo particular com o divino.
Do conjunto dos 70 entrevistados, 28 ateus e agnósticos não acreditavam em Deus, 4 agnósticos tinham dúvidas, 33 que se definiam como sem religião com religiosidade acreditavam numa força suprema qualquer e 5 num Deus pessoal. A personalização do transcendente estava presente, sobretudo, entre aqueles nascidos de famílias protestantes das diversas denominações, que carregavam a noção cristã de Deus, diferente daqueles que rompiam com essa tendência, desenvolvendo uma imagem do transcendente vinculada às forças da natureza, traduzida como força superior, energia ou esmo, força interior. Misia Reesink (2005, p.12-13), ao estudar a construção da noção de Deus por um grupo católico, ressaltou que a noção de pessoa de seus informantes era fundada na noção cristã de Deus. Em sua análise de entrevistas, a autora localizou imagens fundamentais para a representação de Deus como as figuras da Trindade e, sobretudo, de Jesus Cristo. Elas eram associadas numa razão lógica que envolvia sentimentos humanos sublimes como o amor, o perdão, a justiça e a misericórdia, os quais também são acompanhados da idéia de salvação, que faz parte da visão de mundo cristã. Essa noção de pessoa cristã nem sempre está presente entre os sem religião com religiosidade, que muitas vezes optam por percepções mais orientalizadas como já sinalizado. Gláucio Dillon e Paola Ramos (2003, p.35-36) em outro estudo do qual foram excluídos os sem religião e os sem definição de religião, tentaram traduzir a relação do ser humano com o divino através da imagem de Deus em várias religiões. Para eles, as religiões oferecem ao fiel uma estrutura que o aproxima da figura de Deus, variando de uma para outra, o que resulta em múltiplas imagens de Deus. No catolicismo, por exemplo, Deus pode ser representado desde como escudos, fortalezas e santos até como rei, uma herança judaica que desperta certa rejeição por consistir num modelo monárquico, oposto a ideais inclusivos.  Essas imagens, de um ser supremo até Jesus Cristo, são similares no entre os espíritas kardecistas. No protestantismo as imagens católicas são repudiadas, preferindo os sacramentos, no modelo tradicional, assim como o falar em línguas, e o batismo pelo Espírito Santo, no modelo pentecostal. Entre os cultos afro-brasileiros, na umbanda, uma religião nacional sincrética, Deus é representado como um criador, capaz de formar e transformar tudo; enquanto no candomblé, por sua vez, Deus é o orixá, o santo que estabelece uma relação particular com o indivíduo, seu filho. Entre os grupos esotéricos, por fim, as formas são as mais variadas, em geral muito próximas à visão oriental. Para os autores, o esoterismo pode estar vinculado ao processo de secularização, se apresentando como uma filosofia ou crenças isoladas, e não como uma religião, o que se aproxima, nessa ótica, da postura dos indivíduos sem religião com religiosidade, que muitas vezes são simpatizantes de práticas como cartomancia, astrologia, meditação, experiências extracorpóreas, entre outras. Conforme os autores (Dillon & Ramos, 2003, p.47) “quem acredita em Deus necessariamente tem uma relação com o divino que se concretiza na prática religiosa, ou religiosidade.  Mas a religiosidade não é igual em todos: ela varia entre pessoas, admite graus.” Ou seja, a imagem de Deus torna a religiosidade tangível, constituindo-se como uma subjetividade e uma prática, que só depende de cada indivíduo, variando, assim, de crenças e atitudes.
Essa prática pode ser percebida através de indagações sobre experiências místicas ou práticas rituais; porém, é preciso ressaltar que, no grupo dos 70 entrevistados da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, mesmo alguns ateus e agnósticos muitas vezes admitiram já terem passado por tais experiências, não constituindo aqui uma característica exclusiva dos indivíduos do tipo com religiosidade. Dos 38 que não tinham nenhuma familiaridade com práticas místicas ou rituais, 14 eram sem religião com religiosidade, 21 ateus e 3 agnósticos.  Entre os 30 que admitiram ter passado por algum tipo de experiência mística, 22 eram pessoas sem religião com religiosidade, 5 ateus e 3 agnósticos. Do total (70) apenas dois não responderam. A partir disso, verifica-se que o indivíduo, a despeito de suas convicções, pode libertar-se ou transformar sua relação com o transcendente, que deixa o pedestal celestial para compartilhar a experiência terrena do indivíduo. Troca-se a imagem do pai justiceiro por outra, a do companheiro solidário, com o qual se pode conversar invés de rezar, estabelecendo uma comunicação mais direta, sem intermediações. Seus rituais não precisam estar necessariamente atrelados às de instituições ou grupos locais, podendo realizar-se reservadamente, numa concepção muito reservada de transcendência, de acordo com a formação, o tempo e a disposição de cada um. O deslocamento da religião na sociedade contemporânea parece, assim, correlacionado ao desencaixe dos sistemas tradicionais, nos termos de Anthony Giddens (1991, p.58), ampliando as possibilidades de mudança ao soltar as amarras dos hábitos e das práticas locais. Nessa mudança está inserida a relação do indivíduo com o transcendente, a percepção de sua imagem e práticas. Conforme Giddens, a vida contemporânea está repleta de descontinuidades, de mudanças, porque a alta modernidade, como ele define a contemporaneidade, é extremamente mutável. É nessa conjuntura que florescem os indivíduos sem religião, livres pensadores, sem igreja, misturados com ateus e agnósticos com os quais só tem em comum a falta de pertencimento.
Acessado em 10/03/2009 no sítio Espaço acadêmico. Todas as modificações posteriores são de responsabilidade do autor do texto.
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