Ensino Religioso
05/10/2007
Projeto "Deus na escola"?
Roseli FischmannO Governador José Serra deve vetar o projeto de lei "Deus na escola" porque é inconstitucional, violando direitos humanos: contraria o princípio da laicidade do Estado, viola o direito à igualdade e à liberdade de consciência e de crença, dos alunos e dos grupos religiosos. Em que pesem os propósitos proclamados no projeto, a mera oferta do ensino religioso como "conteúdo homogêneo para todas as crenças" a crianças de seis anos, idade em que iniciam o ensino fundamental, seria uma forma de discriminação e opressão. Seria violação da dignidade, da liberdade e do respeito a que toda criança tem direito, como expresso no artigo 227 da Constituição Federal, pelo tipo de constrangimento e conflito a que submeteria os alunos.
Um dos direitos humanos é que aos pais cabe prioritariamente a escolha do gênero de educação a dar aos filhos - o que inclui educação religiosa e o grupo do qual participará. Como poderia uma criança conviver sem conflito com um conteúdo que, ao oficialmente "homogeneizar" a diversidade, seria diferente do que lhe é dado por sua família e comunidade religiosa? Os alunos do ensino fundamental são consciências tenras, mais vulneráveis a atos que, sob o manto da boa intenção, podem promover danos de longa duração. Implantar a divindade como "matéria" escolar, mediante o conceito de que seria possível homogeneizar as religiões e espiritualidades como ato de Estado, pode desenvolver nos alunos disposição psicológica para discriminar e excluir todos os que não se submetem a semelhante padrão homogêneo, levando à perda da capacidade crítica (que a educação deve promover) de identificar o que é proposto como tirania, ao arrepio do pluralismo e da democracia.
Autores, como Allport, Adorno e Kelman, indicam que a rejeição da pluralidade leva a uma disposição psicológica para o totalitarismo e o autoritarismo, com repercussões profundas sobre o individual e o coletivo. Mesmo propondo o ensino religioso como facultativo, o projeto é inconstitucional, ao estabelecer que o Estado abandone a posição imparcial que deve ter por ser laico para assumir o papel de doutrinador do tema religioso. O projeto viola o direito à liberdade das organizações religiosas, interferindo de forma inconstitucional na esfera que lhes é privada. Isso porque estabelece o Estado como responsável pela definição de qual é a divindade -nome, atributos e desígnios- a ser sancionada como oficial e estatal e, assim, ensinada às crianças de todas as crenças. Como se pode esperar que as religiões aceitem placidamente que seus conteúdos sejam violados em sua integridade e singularidade para compor um conteúdo homogêneo?
Mesmo quem pouco conheça de religiões entenderá o absurdo de tentar propor uma única divindade, em um quadro em que mesmo as religiões monoteístas, de tradição abraâmica, não têm unanimidade teológica; ficaria aqui a pergunta sobre qual monoteísmo seria escolhido, no que parece ser a proposta do projeto de lei. Pois, ao escolher assim, o projeto desconsidera o politeísmo, desrespeitando parcelas da população que praticam religiões de matriz africana; ignora crenças que não se referem à divindade, como o budismo. Reforça a inaceitável estigmatização de ateus e o desconhecimento sobre agnósticos, violando o direito de todos esses cidadãos de serem reconhecidos da forma como são e como crêem ou não crêem, sem o risco de serem banidos da esfera pública. Pois não cabe ao Estado laico fazer escolhas e definições religiosas, mas proteger igualmente a escolha de consciência e de crença de todos os cidadãos e cidadãs.
Já os artífices dessa criação do Criador, segundo o projeto, seriam um grupo de escolhidos (ou "ungidos"?), que teriam, assim, uma cidadania mais reconhecida que a dos demais, gesto que seria repetido por cada conselho de escola e cada professor, ao sabor de sua interpretação. Observe-se que o artigo 19 da Constituição veda à União, aos Estados e aos municípios tanto estabelecer cultos religiosos ou igrejas e subvencioná-los quanto criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. É dessa armadilha que o governador deve escapar, vetando o projeto de lei.
Roseli Fischmann, 54, doutora e livre-docente, é professora do programa de pós-graduação em educação da USP e expert da Unesco para a Coalizão de Cidades contra o Racismo, a Discriminação e a Xenofobia. Integrou a Comissão Especial de Ensino Religioso do Governo do Estado de São Paulo (1995-1996).