Ensino Religioso
17/12/2009
Aula sobre mitos africanos gera polêmica
Rosane GarciaPublicação: 19/11/2009 09:47
Às vésperas das comemorações do Dia Nacional da Consciência Negra — 20 de novembro, data da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares(1) e referência da resistência do povo africano à escravatura —, um conflito entre a religião e o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira mudou a rotina do Centro Educacional nº 4 de Taguatinga. De um lado, o professor Francisco Albuquerque Santos Filho; de outro, alunos católicos e evangélicos do 1º ano do ensino médio. Os estudantes insurgiram-se contra a temática deste ano referente aos orixás cultuados nos terreiros de candomblé. Eles se recusaram a fazer um dos painéis programados ainda em setembro como estratégia do professor para debater os mitos africanos.
Francisco Albuquerque ensina história e cultura africana e afrobrasileira: devolvido à Regional de Ensino
Os painéis comporiam o cenário para a agenda de atividades de amanhã, em homenagem a Zumbi, com enfoque nas manifestações culturais brasileiras, originárias das danças, jogos e lutas dos povos africanos, como maracatu, maculelê, capoeira, congada, reisado, tambor de mina e jongo. Ao lado dessas expressões, ocorreriam diversas palestras.
O desentendimento chegou à direção da escola, que acolheu as ponderações dos estudantes e acabou devolvendo o professor Francisco Albuquerque à Diretoria Regional de Ensino (DRE). Para a direção do Centro Educacional nº 4, na homenagem a Zumbi, não cabe a difusão do ritual das religiões de matriz africana.
De acordo com o vice-diretor do CED 4 de Taguatinga, Raimundo Monção, desde agosto, a diretoria vinha recebendo queixas dos alunos por causa do andamento do projeto. Segundo ele, os estudantes alegavam que eram obrigados a praticar os rituais do candomblé, em vez de aprenderem sobre a história e a cultura africana e afrobrasileira. “A Constituição diz que o Estado é laico e que todos nós temos direito à cultura e à religiosidade, mas cada um na sua. Então, ninguém pode obrigar uma pessoa a praticar o culto que não quer. E é o que estava acontecendo na escola”, conta Monção.
“Gesto de intolerância”
O professor rebate: “Nunca pretendi ensinar o ritual do candomblé aos alunos”. Ele garante que a religião das diferentes etnias africanas trazidas ao Brasil no período colonial foi o elemento de união de todas elas e de resistência ao tratamento desumano dispensado pelos senhores de engenho aos negros. Albuquerque lamenta o comportamento da direção da escola. “Foi um gesto de intolerância, ela poderia ter mediado a resistência dos alunos em trabalhar a mitologia africana.”
Monção afirma que, por várias vezes, a equipe diretora conversou com o professor Albuquerque para que ele mudasse a vertente do projeto. “Poderíamos, sim, fazer um projeto cultural, desde que ele não tivesse afinidade com nenhuma religião. No entanto, não tivemos sucesso e foi necessário afastar o professor”, diz.
Albuquerque trabalha há três anos a aplicação da Lei nº 10.639/2003 com os alunos do ensino médico. A lei inclui no currículo da rede de ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura africana e afrobrasileira.
O professor diz ainda que busca, em suas aulas, ensinar como os costumes e os hábitos dos negros africanos contribuíram para a cultura brasileira. “Não fico restrito à história da religiosidade africana e às suas expressões atuais, mas ensino a trajetória desde a África antiga, um continente rico e próspero, passando pela ocupação europeia do território africano, o início da escravidão, o embarque de negros para o Brasil até chegarmos ao processo de submissão desumana imposta aos africanos”, explica.
1 - Símbolo
Localizado na Serra da Barriga (AL), o Quilombo dos Palmares abrigou, por mais de um século, os escravos — negros e índios — fugitivos da escravidão. Palmares tornou-se um ícone da luta dos negros e afrodescendentes a todas as formas de opressão. Seu líder de maior expressão foi Zumbi. A partir de 1694, investidas cada vez mais agressivas foram feitas contra o quilombo. Zumbi acabou morto em emboscada em 20 de novembro de 1695.
Alunos não queriam candomblé
Alunos do CED 4 se manifestaram sobre a polêmica. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) na mão, o presidente do grêmio estudantil, Edgar Froes, 18 anos, afirma que o aluno tem liberdade de crença e culto religioso e, mesmo assim, o professor estava obrigando os estudantes a praticarem um culto religioso. “Era para ser um trabalho cultural, mas acabamos caminhando só para o lado da religião.”
Para o aluno Diego Nunes, 16, ensinar a cultura afrobrasileira é importante, mas o trabalho poderia ter sido conduzido de outra forma. “Nossa turma resolveu fazer os orixás por ser uma questão cultural, mas expor do jeito que ele queria, eu acho que seria constrangedor. Tinham uns bonecos com faca na cabeça, acorrentados. E o professor queria que a gente fizesse a dança jogada de rede, que só é dançada em terreno de candomblé”, argumenta.
Os estudantes se queixaram ainda que todo o material necessário para o trabalho tinha que ser comprado por eles em casas de candomblé, conforme orientação do professor. Segundo eles, houve quem gastasse R$ 300 para montar os orixás. “Ele obrigava a comprar os materiais e ameaçava não passar a gente de ano caso não obedecêssemos a orientação”, acusa Maria Kamila Tavares, 15.
Apesar da polêmica, o vice-diretor afirma que a escola não deixará de comemorar a data. Porém, a programação será readaptada, sem “práticas de religião”. As homenagens a Zumbi somente ocorrerão na semana que vem.
Diretoria regional vai apurar o caso
A Diretoria Regional de Ensino de Taguatinga acatou a devolução do professor Francisco Albuquerque. Albuquerque foi transferido de imediato para o Centro Educacional 7, até que o caso seja apurado. “Se verificarmos que não houve culpa, o professor volta para a escola de origem”, explica Sueli Kazuko, assistente da DRE de Taguatinga. Se for culpado, Albuquerque será incluído nas punições administrativas previstas em lei. A Secretaria de Educação não se pronunciará sobre o assunto.
A intolerância de certas religiões com crenças de matrizes africanas é lembrada por Carlos Moura, assessor especial da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). “Tenho a impressão de que houve preconceito quanto à simbologia de uma dança que pudesse fazer referência aos orixás. Mas, se o professor quis obrigar alunos à prática religiosa, também não está certo. É preciso apurar e, se for o caso, punir”, afirma ele.
Na avaliação do padre Ari Antônio dos Reis, membro da pastoral afrobrasileira, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a cultura deve ser trabalhada no sentido amplo, não com rituais. O padre apoia o ensino da temática nas escolas, mas acredita que o ideal seria trabalhar os aspectos estruturantes da religião.
Para o vice-presidente da Igreja Batista Central de Brasília, pastor Ricardo Espíndola, o professor foi “infeliz” ao planejar o trabalho. “A minha religião não é a expressão máxima da cultura brasileira nem a minha cultura se resume à minha religião. Não posso obrigar uma pessoa que faz parte de um credo diferente a participar de rituais do meu credo.”