Ensino Religioso
10/03/2011
A morte nos contos de fadas
Por Ana Lucia SantanaOs contos de fadas exercem uma influência profunda sobre a Humanidade, não apenas por embalarem a nossa infância, mas principalmente porque atuam no inconsciente humano, propiciando um desenvolvimento mais saudável da psique. Isto porque eles enfocam a travessia do Homem pela vida, seus esforços, dificuldades e sofrimentos, necessários para que ele atinja sua meta final.
Joseph Campbell se refere a esta caminhada existencial como a Jornada do Herói. Em cada história há sempre um príncipe, uma princesa, enfim, um ser heroico que tem uma missão a cumprir, a qual será recompensada com o alvo dos desejos do protagonista – geralmente a conquista de um reino, o casamento com a pessoa amada, ou uma existência eternamente feliz.
Esta jornada é, na verdade, um processo de autoconhecimento, uma busca de si mesmo, que remete a um consequente aprimoramento da alma humana. A caminhada interior pode ser analisada em quatro estágios, os quais correspondem a momentos específicos da viagem de cada um pela vida.
A Travessia é marcada pela chegada da personagem principal a uma paisagem que lhe é estranha, povoada por eventos fantásticos e seres inusitados. O Encontro é o instante em que ela se depara com um representante do mal, seja a madrasta sinistra, o lobo mau, um feiticeiro macabro.
Na etapa da Conquista o protagonista enfrenta o adversário em um confronto que pode lhe permitir viver e adquirir o prêmio desejado, ou levá-lo até a morte. A Celebração é o desfecho feliz dos contos de fadas, quando finalmente o matrimônio tão esperado é realizado ou uma família festeja a derrota da maldade.
A morte, porém, é sempre uma sombra presente, vista como uma ameaça, o pior destino que o herói ou a heroína poderia encontrar. Mesmo assim, nada pode impedir que alguns personagens atravessem as terras desta criatura temida, em estágio temporário. Branca de Neve e Bela Adormecida a vivenciam como uma passagem, um rito de iniciação imprescindível para que elas passem a um outro patamar da existência. Ambas renascem através da força do amor, simbolizada pelo beijo do príncipe que as desperta.
Aparentemente inocentes, os contos não mencionam a morte da protagonista, a não ser através da metáfora do sono profundo, a que Bela é condenada por uma fada, e Branca de Neve por sua madrasta, após comer uma maçã envenenada. É comum, porém, sua presença nas histórias através da morte do pai ou da mão do personagem principal, como em Cinderela, jovem órfã criada pela madrasta, e por ela tratada como uma serva.
Assim, a morte é um elemento que provoca expectativas e aflições em heróis e heroínas, da mesma forma que a criança teme o desaparecimento de seus pais. Um exemplo claro, porém, da forma como a nossa civilização vem procurando eliminar a presença da morte nos contos de fadas, é a história de Chapeuzinho Vermelho.
Nos enredos primitivos a garota ia, a pedido da mãe, entregar à avó leite e pão, mas o lobo ladino antecede sua chegada, come sua avozinha e aguarda a apetitosa criança. Neste ponto entram em cena imagens violentas e a própria morte, pois o animal estupra Chapeuzinho e depois a devora. Apesar de parecer uma versão muito agressiva do conto, a intenção é alertar os jovens leitores contra os perigos do mundo.
Ao longo do tempo, a tradição oral acrescenta à narrativa um personagem decisivo, o caçador, que salva a heroína e sua avó ao abrir a barriga do lobo. No século XIX os irmãos Grimm, a quem são atribuídas as versões definitivas dos contos de fadas, extraíram das histórias originais tanto as cenas sexuais quanto a violência.
Inúmeros outros contos abordam a questão da morte, mais ou menos explicitamente, ainda que seu papel nas histórias tenha sido, ao longo do tempo, atenuado, e ela seja ainda vista como um fantasma ameaçador, ao invés de ser considerada como o que realmente é, uma passagem, a travessia para novos estágios da existência, as várias perdas que o ser enfrenta ao longo da jornada, não apenas nas histórias fantásticas, mas principalmente no que se convém chamar de realidade.