Ensino Religioso
12/05/2011
Torá: Ensinamentos de todo dia
Por Fábio Metzger - Apesar de séculos de conflito e intolerância, as grandes religiões monoteístas têm muito em comum. Os primeiros livros do Velho Testamento (Gênesis, Êxodo, Levíticos, Números e Deuteronômio), conhecidos como Pentateuco, são escrituras sagradas para o cristianismo e para o islamismo. Já para o judaísmo, eles são o próprio livro sagrado. Juntos, os cinco recebem o nome de Torá – palavra que, em hebraico, significa “lei” ou “ensinamento”. Ali estão inscritas as leis pelas quais o povo judeu se orienta há milênios – e que serviram de ponto de partida para a Bíblia e o Alcorão. Para os judeus mais religiosos, a Torá é um guia completo de como levar a vida, com preceitos éticos, filosóficos e jurídicos. A obra tem, ao todo, 613 normas básicas, que tratam de temas como matrimônio, não-adoração de ídolos, respeito aos mais velhos e descanso semanal. Há leis que regulamentam o modo de abater os animais antes que se coma sua carne e descrevem os alimentos proibidos. Acredita-se que esses tabus tenham nascido das condições de higiene e saúde da Antiguidade. A proibição da carne de porco ou de frutos do mar, por exemplo, teria sido criada para evitar intoxicações na população – dada a dificuldade de se conservar esses alimentos. Além da Torá, o judaísmo desenvolveu escritos complementares, destinados à orientação individual, como o Pirkei Avot (“A Ética dos Patriarcas”). Seu preceito principal é “não faz aos outros aquilo que não desejas que façam a ti” – se você pensa que já ouviu isso antes, provavelmente está se lembrando das palavras do judeu Jesus, que recomendou algo semelhante ao pregar que um ser humano deve fazer ao outro aquilo que quer que seja feito a ele mesmo. A literatura religiosa do povo hebreu inclui ainda o Talmude, que atualizou as leis judaicas na época em que os judeus faziam resistência ao poderio do Império Romano (veja quadro na p.56). A narrativa da Torá é essencial para entender como o povo judeu definiu sua identidade diante dos estrangeiros. Isso começa na lenda dos filhos de Noé, que, após se salvarem de um dilúvio, deram origem a três grupos étnicos. Com Cam nascem os camitas, da África. Com Jafet, os europeus. E, a partir de Sem, surgem os semitas, no Oriente. Estes se subdividiram, formando etnias como os caldeus, que é de onde teria vindo o profeta Abraão. Ele é quem funda o povo hebreu, saindo de Ur, na Mesopotâmia (no atual Iraque), e partindo rumo à Terra Prometida, chamada Canaã (onde hoje ficam o Estado de Israel e os territórios palestinos ocupados). A partir de Abraão, há uma sequência hereditária de profetas que passa por nomes como Ismael, Isaac e Jacó, até chegar a Moisés. Liderado por eles, o povo hebreu saiu de Canaã e foi viver no Egito, para depois retornar à Terra Prometida, conforme a saga contada na Torá. “Ela teria sido escrita entre os séculos 11 e 5 a.C., não há dados precisos”, diz o professor Alexandre Rofê, da Universidade Hebraica de Jerusalém. “O mais provável, por exemplo, é que Abraão fosse uma figura mítica, e não um personagem que realmente tenha existido.” Recentes estudos arqueológicos indicam, no entanto, que os personagens da Torá podem ter sido inspirados em gente de verdade. Com a descoberta de antigos arquivos administrativos e particulares, encontrados em cidades da Mesopotâmia, Síria, Egito e Anatólia, o rumo do estudo sobre as narrativas dos patriarcas de Israel mudou bastante. Os fundadores da religião judaica passaram a ser vistos por pesquisadores como homens e mulheres de seu tempo, e não mais como personagens puramente fictícios – o que era a tese defendida por algumas escolas de estudiosos. Um dos arquivos encontrados pelos arqueólogos foi o da administração da antiga cidade mesopotâmica de Mari (hoje Tel Hariri, na Síria). Nesses documentos, o nome mais citado é Yahqub, o mesmo que Yaaqov, ou simplesmente “Jacó”. Há também menções a outros nomes presentes na Torá (e referências a Avram, Abi-ram ou ainda Ahi-ram, que lembram “Abraão”). Isso não prova que os personagens tenham existido, mas mostra que as pessoas da época tinham nomes iguais ou semelhantes aos dos patriarcas. E, segundo os mesmos arquivos, viviam como eles. Os documentos achados em Mari ajudam a entender o cotidiano dos hebreus antigos. No início da Torá, eles eram um povo em formação, com número reduzido de membros, cuja principal atividade econômica era o pastoreio. Naquela época, viviam entre o nomadismo e a vida sedentária. Esse tipo de organização social é descrito no arquivo de Mari e também no primeiro livro da obra, o Gênesis. As duas fontes oferecem um relato detalhado das relações entre as tribos nômades e a população urbana. Na sociedade antiga da região, uma parte dos habitantes vivia no centro urbano e outra em tendas, em acampamentos no interior.
Tudo em família Segundo a Torá, Sara, esposa do patriarca Abraão, era estéril. O profeta então teve um filho com sua criada egípcia, Agar, chamado Ismael. No entanto, anos depois, Sara foi capaz de dar à luz Isaac, e exigiu que Agar se retirasse com Ismael para o sul. A história do povo judeu segue então a linhagem do filho legítimo de Abraão. Mas, no século 7, beduínos liderados por Maomé recuperaram a história de Ismael e, baseados nela, fundaram a religião islâmica. Além dessa diferenciação religiosa, a distinção étnica entre judeus e árabes também é mencionada na Torá. Após brigarem, Esaú e Jacó, filhos de Isaac, se separaram. Jacó, o favorito do pai, ficou sendo o herdeiro da tradição hebraica. Esaú, por sua vez, daria início à história dos povos árabes. É interessante notarmos como as preferências dos pais em relação a um de seus filhos são determinantes na Torá. O filho favorito de Jacó, José, acaba sendo vendido pelos irmãos a um egípcio e se torna escravo. Mais tarde, José consegue a liberdade e se torna funcionário da monarquia egípcia. Seus irmãos acabam migrando para o Egito e, ao se reencontrar com José, reconciliam-se com ele. A partir daí, a narrativa prossegue sem cisões e, com isso, sem ramificações que dêem origem a outros povos e etnias. O povo hebreu se fixa então no Egito, onde suas principais atividades são agrícolas. Enquanto a região foi governada por grupos estrangeiros, os judeus gozaram de autonomia. Mas, quando uma dinastia egípcia assumiu o poder, eles foram escravizados, conforme conta o texto da Torá. Pouco se sabe sobre o que aconteceu exatamente durante o período de escravidão dos hebreus no Egito. “Há, sem dúvida, um material de antigos clérigos egípcios falando acerca dessa questão”, afirma o historiador Rofê. Em um sítio arqueológico no local onde ficava a antiga cidade de Ramsés (estima-se que ela date de 1250 a.C. e tenha abrigado 20 mil habitantes), foi encontrada uma tábua de argila listando os povos que teriam sido capturados pelo faraó. Lá existe a menção a um grupo chamado “habiru” – uma possível referência ao termo “hebreu”. A servidão só acaba quando surge um líder capaz de unir os judeus, Moisés. De acordo com a Torá, ele era descendente de Levi, um dos 12 filhos de Jacó. Não há vestígios de que ele tenha realmente existido, mas ele teria sido criado pela família real egípcia, tornando-se o braço direito do faraó. Com o tempo, foi se aproximando de seu povo e se tornou o interlocutor dos hebreus com o governo, a ponto de conquistar liderança e reconhecimento. Mas, sem conseguir melhorar as condições de vida dos judeus, Moisés teria rogado pragas aos egípcios. Algumas dessas pragas, descritas na Torá, podem ter relação com fenômenos naturais. Essa é a hipótese do americano John S. Marr, diretor de Epidemiologia do Departamento de Saúde do Estado da Virgínia, Estados Unidos. No documentário Ten Plagues of Egypt, Marr afirma que cinzas vulcânicas podem ter intoxicado as algas do Nilo, tornando-as vermelhas e matando toneladas de peixes. Além disso, o desequilíbrio ecológico teria feito sapos saírem das margens para terreno firme, morrendo fora de seu habitat. Isso teria gerado a superpopulação de insetos que atormentou a população. O vulcão responsável pode ter sido o de Santorini, na Grécia, que teria entrado em erupção em torno de 1600 a.C., período próximo dos eventos citados na Torá – as cinzas teriam atravessado o Mediterrâneo e entrado no delta do Nilo. Depois que as pragas se abateram sobre o Egito, Moisés conseguiu do faraó a libertação dos hebreus para retornar a Canaã. Consciente de não ter força militar para tomar de volta a Terra Prometida, ele optou por vagar com seus súditos por 40 anos no deserto (punindo severamente os idólatras e quem desejava fazer os hebreus retornarem ao Egito). Nesse período, Moisés definiu um herdeiro político, o temível guerreiro Josué. Foi sua audácia que possibilitou o retorno a Canaã, derrotando os povos que lá viviam (e, milênios depois que essa história foi escrita, a paz ainda não chegou à região).
A pátria portátil O Talmude surgiu para manter a unidade do povo hebreu No século em que Jesus Cristo viveu, os judeus estavam envolvidos na resistência contra o Império Romano. Pensando em como lidar com esses tempos difíceis, rabinos decidiram atualizar as leis judaicas. Era uma forma de enfrentar o direito romano, imposto aos locais subjugados pelo Império. Além disso, esse livro serviria a um eventual exílio, em que os judeus estariam expostos aos hábitos de outras populações. É aí que surge o Talmude. Trata-se de um livro que foi escrito durante cerca de três séculos, pouco antes da expulsão dos judeus de Canaã, na Palestina, até o início da Idade Média. O Talmude contém 63 tratados, que falam de assuntos legislativos, morais e éticos e contam narrativas históricas. Seu conteúdo definitivo data do ano 499. O livro tem duas versões, ambas produzidas na mesma época: o Talmude Yerushalmi (de Jerusalém), escrito de forma mais vaga, e o Talmude Babli (da Babilônia), mais detalhado. Acredita-se que, entre a população da antiga Judeia, os conhecimentos sobre religião eram maiores, dispensando o didatismo usado na versão babilônica. O maior detalhamento do Talmude Babli, entretanto, transformou-o no preferido dos estudiosos contemporâneos. Independentemente da versão, a obra teve grande importância para o povo judeu, que, em seu exílio de cerca de 2 mil anos, viu no Talmude um guia de resistência cultural e religiosa – uma espécie de “pátria portátil”, fundamental para manter a unidade étnica.
Saiba mais Livro A Torá, por ser sagrada, não pode ser vendida. Em sua versão tradicional, ela é um pergaminho manuscrito em hebraico, feito de couro de cabra. Acesso em 12/05/2011 no sítio
historia.abril.com.br