Disciplina - Ensino Religioso

Ensino Religioso

23/10/2007

Os mitos, as religiões e os homens

Antônio Mesquita Galvão*
Milenarmente, o homem tem medo de muitas coisas. Teme a morte, a solidão, a doença, a injustiça, a miséria e as ameaças metafísicas. A adoção do culto aos mitos, revela historicamente, que antes da sistematização das religiões e das crenças, o homem dissipou, pelos mitos e pela utopia, a soma de seus medos. O ser humano, por conta de sua finitude e limitação, muitas vezes tem medo de viver, e por conta disto sempre buscou cultuar a memória de heróis ou inventar sagas de semideuses, demiurgos e guerreiros, vencedores das dificuldades, das ameaças da natureza, dos confrontos com os seres (na-turais ou sobrenaturais) bem como do maior temor, que é a morte. O medo de viver empurra-o ao mito.
Quem viaja pela Grécia sente pulular, como legendas vivas os inúmeros mitos que por lá surgiram e que povoam o imaginário humano do mundo inteiro, até hoje. Os antigos poetas helênicos aconselhavam os visitantes: "Viva seu mito na Grécia". A partir da introdução do mito, como um assessório da vida, a pessoa é convidada a ver mais, fazer mais e ser mais. Nisso consiste o ideal humano na busca da felicidade.
Ao criar os mitos, o ser humano projeta nessas fantasias a idealização para a sua condição física, assolada pela vulnerabilidade. A criação de ídolos popu-lares, atletas, artistas, intelectuais, ganhadores de concursos de beleza ou de força física, ou mesmo pessoas de destaque público, revela que o ser humano projeta no outro as habilidades e qualidades que ele não possui ou se acha impossibilitado de atingir. A mitologia, a partir da grega, enfatizava o contras-te entre as fraquezas dos seres humanos e as grandes e aterradoras forças da natureza. Os povos da Antigüidade reconheciam que suas vidas dependiam completamente da vontade dos deuses. O reconhecimento de que suas vidas dependiam dos deuses, mais tarde daria lugar às crenças e às religiões.
O mito sempre aponta para uma fantasia capaz de minimizar as fraquezas humanas. Cultuamos o mito e seus semideuses para estabelecer uma antíte-se à nossa fragilidade. Homero afirma, em sua Odisséia que "você não sentirá a força do mito, na procura do caminho do Odisseu (Ulisses) nem nas memó-rias dos Lacedemônios (espartanos) se você não procurar encontrá-los em seu coração. A fantasia se refere a uma sensação fruto da imaginação, tanto re-produtora quanto criadora. Vive-se a fantasia do mito não com a inteligência, mas com o coração. Precisa ser um pouco grego para entender isso de forma adequada. O vigor do mito só pode ser desfrutado pela sensibilidade do cora-ção".
Para Platão a fantasia é uma imagem fora da realidade. A mitologia é secu-larmente vista como a origem da psicologia de auto-ajuda. Durante séculos os seres humanos usaram mitos, contos de fadas, lendas e folclore para explicar os mistérios da vida e torná-los suportáveis - desde o porquê as estações do ano mudam até o enigma da morte - passando por complexas questões de relacionamento. No cristianismo, que não é um mito, Jesus explicou os seus ensinamentos por meio de parábolas, dando aos seus seguidores problemas difíceis sob uma forma fácil de compreender. Platão transmitiu conceitos filo-sóficos obscuros através de mitos e alegorias simples.
É comum ao ser humano abrigar mitos em seu coração, como felicidade, a-mor, justiça, coragem, poder. Filosoficamente, as crenças e os arquétipos e-xistenciais, tudo passa pela fantasia do mito. Nosso espírito, embora alguns até possam discordar, está generosamente povoado de mitos. As religiões, to-das elas, têm mitos em suas formulações originais.
Nesse contexto, o mito torna-se a projeção de uma energia otimizada, com traços supra-naturais, supervenientes às nossas fraquezas e limitações. O homem sempre se agarrou nos mitos para obter impulso a fim de suplantar as vicissitudes de sua vida. O jogador Pelé, por exemplo, tornou-se um mito do esporte, na medida em que foi assim entronizado pelos que não consegui-ram jogar futebol como ele. Neste caso, a figura dos super-heróis vêm em so-corro da carência humana.
Na antiga medicina hinduísta, quando alguém, com dificuldades mentais ou emocionais, consultava um médico, e este lhe prescrevia uma história sobre a qual meditar, com isso ajudando o paciente a encontrar sua própria solução para o problema. Muitas vezes é o nosso pensamento linear, racional e obce-cado com as causas, que obscurece o sentido mais profundo e a resolução dos dilemas da vida.
Na maioria das vezes, o termo mito refere-se especificamente aos relatos das civilizações antigas que, organizados, constituem uma mitologia - por exemplo, a grega e a romana. A partir dessas constatações, vemos que todas as culturas têm seus mitos, alguns dos quais são expressões particulares de arquétipos comuns a toda a humanidade. Por exemplo, os mitos sobre a criação do mundo repetem alguns temas, como o ovo cósmico, ou o deus assassinado e esquartejado cujas partes vão formar tudo que existe. No mito ocorre o entrelaçamento com a fábula, o conto de fadas, a lenda, a saga, e até a história. A ciência moderna nos revela que o símbolo é um elemento primordial no processo da comunicação.
O termo símbolo, com origem no grego symbolon, designa um elemento representativo que está (realidade visível) em lugar de algo (realidade invisí-vel), que tanto pode ser um objeto como um conceito ou idéia, determinada quantidade ou qualidade. Nessa perspectiva, o símbolo é um elemento essencial no processo de comunicação, encontrando-se difundido pelo quotidiano e pelas mais variadas vertentes do saber humano.
Embora existam símbolos que são reconhecidos internacionalmente, outros só são compreendidos dentro de um determinado grupo ou contexto (religioso, cultural, etc.). A representação específica para cada símbolo pode surgir como resultado de um processo natural ou pode ser convencionada de modo como o receptor (uma pessoa ou grupo específico de pessoas) consegue fazer a interpretação do seu significado implícito e atribuir-lhe determinada conotação. Pode também estar mais ou menos relacionada fisicamente com o objeto ou idéia que representa, podendo não só ter uma representação gráfica ou tridimensional como também sonora ou mesmo gestual. No decorrer deste trabalho poderemos ver que o estudo dos mitos, dentro de algumas perspecti-vas, como da psicologia junguiana, por exemplo, é fundamental para que o ser humano se conheça a si mesmo. As diversas configurações simbólicas tra-tadas na obra dos grandes psicanalistas, sejam elas da mitologia grega, literá-rias, ou nitidamente cientificas, representam símbolos originais do processo de individuação.
O símbolo pode lançar luz tanto sobre o desenvolvimento psicológico do indi-víduo, quanto sobre os complexos problemas sociais da cultura atual. Mais adiante entraremos na conceituação de arquétipo. Na Mitologia grega há, por exemplo, os mitos de Édipo, de Narciso e da Esfinge. ("decifra-me ou te devo-ro"). Esse dualismo se encontra na maioria das religiões. Só quem decifra o mistério é capaz de penetrar no contexto da doutrina.Os mitos têm a misterio-sa capacidade de conter e transmitir paradoxos, permitindo-nos ver, em volta e acima do dilema, o verdadeiro cerne da questão.
Os mitos são, geralmente, histórias baseadas em tradições e lendas feitas para explicar o universo, a criação do mundo, fenômenos naturais e qualquer outra coisa a que explicações simples não são atribuíveis. Mas nem todos os mitos têm esse propósito explicativo. Em comum, a maioria dos mitos envolvem uma força sobrenatural ou uma divindade, mas alguns são apenas lendas tradicionais, passadas oralmente de geração em geração.
As perguntas primeiras, porém, perduram: afinal, o que é mito? Mito, mythos, no grego, na verdade, não é fácil defini-lo academicamente. É mais fácil em-pregar o método comparativo para compreendê-lo. Mesmo assim vamos ten-tar, vê-lo como um relato fabuloso de caráter mais ou menos sobrenatural ou sagrado. Nas culturas em que seu estudo é ativo, o mito serve de referência, justificativa ou paradigma (modelo). Há quem diga que mito é um relato cujas origens foram esquecidas ou, por fim, a história, não-científica do pensamen-to primitivo de um povo.
O mito faz parte de um jogo de perguntas e respostas, ele responde aos por-quês do homem de todas as épocas: "Por que o sol nasce e se põe?", "Por que há maldade no mundo?". "O que é o ser?". Apesar do mito apresentar uma explicação atualmente encarada como fantástica e ilusória, não há como ne-gar sua forte carga de imagens, símbolos e alegorias capazes de penetrar na mente humana, justificando sua apropriação pela psicanálise. Segundo os estudiosos, o mito pode ser entendido como um sistema dinâmico de símbo-los, arquétipos e esquemas. Por detrás da formulação de um mito sempre vamos encontrar alguma referência a um estado de necessidade do ser hu-mano. O homem se fortalece a partir dos seus mitos.
Ao tentar entender esse sentimento, que trava uma batalha entre o bem e o mal, o homem cria mitos e histórias que fascinam e o exaltam. A adição do mito ao con-texto da existência humana torna-se pré-texto para a eleição de algo superior, um socorro, um esteio. O mito assume assim o papel de uma ferramenta psicológica e afetivamente saudável, plena de objetivos de valor e de sentido. O mito ajuda o homem a delinear um sentido para a sua vida.
A mitologia é secularmente vista como a origem da psicologia de auto-ajuda. Durante séculos os seres humanos usaram mitos, contos de fadas, lendas e folclore para explicar os mistérios da vida e torná-los suportáveis - desde o porquê as estações do ano mudam até o enigma da morte - passando por complexas questões de relacionamento. Platão transmitiu conceitos filosóficos obscuros através de mitos e alegorias simples. Na antiga medicina hinduísta, quando alguém, com dificuldades mentais ou emocionais, consultava um médico, e este lhe prescrevia uma história sobre a qual meditar, com isso aju-dando o paciente a encontrar sua própria solução para o problema. Muitas vezes é o nosso pensamento linear, racional e obcecado com as causas, que obscurece o sentido mais profundo e a resolução dos dilemas da vida.
Acontecimentos históricos podem se transformar em mitos, se adquirirem uma determinada carga simbólica para uma certa cultura. A partir dessas constatações, vemos que todas as culturas têm seus mitos, alguns dos quais são expressões particulares de arquétipos comuns a toda a humanidade. No mito ocorre o entrelaçamento com a fábula, o conto de fadas, a lenda, a saga, e até a história.
O mito, além de acomodar e tranqüilizar o homem em face de um mundo assustador, dando-lhe a confiança de que, através de suas ações mágicas, o que acontece no mundo natural depende, em parte, dos atos humanos, ele também fixa modelos exemplares de todas as funções e atividades humanas. O mito, portanto, é uma "primeira fala sobre o mundo", uma atribuição pri-meva de sentido ao mundo, sobre a qual a afetividade e a imaginação exercem grande papel, e cuja função principal não é explicar a realidade, mas acomodar o homem a seu ambiente e ao mundo.
Na verdade, há milênios o homem cria seus mitos, seus deuses, que refletem, (até hoje) a sua própria natureza, os sentimentos interiores, medos, desejos mais profundos, sempre acrescidos por elementos que remetem a existência à imortalidade, ao prazer e a satisfação de cada sentimento e emoção (humana), que se torna divina. Os mitos, as histórias criadas pela tradição ou pelo ima-ginário popular, são em sua maioria de caráter atemporal, acontecimentos e personagens misturam-se sem o cuidado de datas e seqüências. O mesmo acontece com o inconsciente humano, que também age de tal forma, resga-tando passados, confundindo-se com o presente.
Culturalmente, o mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Assim, ele é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança, antes de fixar-se como narrativa. A despeito de algumas correntes tentarem reduzi-lo a simples con-junto de lendas, há no mito toda uma potencialidade universal. Poucos se dão ao trabalho de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a ilu-são que o mesmo contém.
O mito não aponta para nenhum tipo de idolatria ou heresia contra as cren-ças tradicionalmente reveladas. Apenas mostra a liberação, através da fanta-sia, dos desejos e questionamentos que habitam a alma humana.
Os filósofos falam em "primeiros princípios". Eles traduzem a origem de uma instituição, de um hábito, a lógica de uma saga, enfim, traduzem a dinâmica de um encontro. Na expressão de J. W. Goethe († 1832), os mitos são as rela-ções permanentes do subconsciente da vida humana.
Antônio Mesquita Galvão*
Filósofo e escritor
* Doutor em Teologia Moral
Edit: Acessado em 28/12/2009 no sítio Adital
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