Ensino Religioso
23/12/2016
A trajetória do pensamento católico no Brasil
José Tadeu Arantes | Agência FAPESPPesquisa investiga a produção teórica e a atuação prática dos católicos no país, desde meados do século XIX, e destaca a trajetória do escritor Alceu Amoroso Lima (foto: Almoço comemorativo da Associação Universitária Católica (1936)/Fundação Dom Vital)
Apesar de persistente declínio numérico ao longo das últimas décadas, o catolicismo ainda é a religião majoritária no Brasil. Segundo dados do Censo de 2010, o último realizado, havia, na população da época, 64,6% de católicos apostólicos romanos; 22,2% de evangélicos (não pentecostais ou pentecostais); 2% de espíritas; 0,7% de testemunhas de Jeová; e 0,3% de umbandistas e candomblecistas, para mencionar apenas os cinco segmentos religiosos com maior expressão quantitativa. No mesmo levantamento, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 8% dos entrevistados declararam-se “sem religião”.
Um projeto temático, com a participação de vários pesquisadores, investiga a trajetória do catolicismo no Brasil desde meados do século XIX e sua influência em vários campos da vida nacional. Trata-se do estudo “Congregações católicas, educação e Estado nacional no Brasil”, coordenado por Agueda Bernardete Bittencourt, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o apoio da FAPESP.
Um dado interessante destacado pelo estudo foi que, embora a colonização europeia do território brasileiro tenha se dado sob a égide do catolicismo, a presença quantitativa de religiosos católicos era muito pequena no país até a última década do século XIX. “Em 1880, havia no Brasil apenas sete ordens religiosas masculinas e 11 femininas, e todo o clero católico era composto por menos de 3 mil pessoas. A entrada maciça de religiosos católicos provenientes da Europa ocorreu a partir de 1890, com picos importantes nas décadas de 1920, 1950 e 1960”, disse Bittencourt à Agência FAPESP.
Os religiosos, homens e mulheres, vieram em congregações – algumas delas previamente estabelecidas no país; a maioria instalando-se com sua chegada. Um dos motivos de sua vinda foi a expulsão dessas congregações dos países europeus devido ao processo de laicização dos Estados nacionais. Outro motivo foi a demanda da elite brasileira e da elite eclesiástica por pessoal qualificado, para estabelecer aqui colégios e asilos, oferecer atendimento à saúde, e mesmo atuar em outras áreas especializadas, como a imprensa.
“Essa entrada maciça de religiosos foi também um projeto da Igreja Católica, que tinha interesse em catolicizar as repúblicas da América Latina – não apenas o Brasil, mas igualmente a Argentina, o Chile, a Colômbia, o México, o Peru, o Uruguai, a Venezuela etc. Pois, durante o século XIX, por decorrência da Revolução Francesa e do ideário liberal ou positivista, houve forte restrição à atuação católica no continente. Conventos foram fechados em países como a Argentina e o Peru. E chegaram a ocorrer perseguições aos religiosos na Colômbia, no México e na Venezuela”, informou a pesquisadora.
De qualquer modo, o Brasil foi o país que mais recebeu religiosos, pela vastidão do território e porque não tinha uma infraestrutura escolar e de saúde que cobrisse tal espaço. Assim, ao longo de quase um século, foram registrados os seguintes números para a entrada de novas congregações: 13 (1890), 20 (1900), 23 (1910), 41 (1920), 29 (1930), 26 (1940), 51 (1950), 41 (1960), em um universo de 260 congregações mapeadas pela pesquisa até o momento.
“Os religiosos que vieram até a primeira metade do século XX estavam, em sua maioria, comprometidos com o projeto de centralização da Igreja, nos moldes propostos pelo Concílio Vaticano I, realizado na segunda metade do século XIX. Com base no dogma da infalibilidade papal, promulgado em 1870 pelo papa Pio IX no decorrer desse concílio, a Igreja se arvorou o direito de ‘dizer a verdade’ a partir de Roma”, afirmou Bittencourt.
Religião do Estado
Como depositária da religião oficial, a Igreja Católica estava submetida ao Estado. Por isso, quando os bispos de Olinda e Belém, influenciados pela ênfase antiliberal do Concílio Vaticano I, desafiaram abertamente o direito civil, ordenando a expulsão dos maçons das irmandades católicas leigas, o caso foi levado ao Superior Tribunal de Justiça, que condenou, em 1874, os dois religiosos a quatro anos de prisão, com trabalhos forçados. O imperador comutou a pena para prisão simples, mas só anistiou os bispos depois que o Vaticano anulou as interdições aos maçons. Tal caso ficou conhecido na historiografia brasileira como a “Questão Religiosa”. Não por acaso, a entrada das congregações católicas no Brasil só adquiriu importância numérica a partir da década de 1890, após a proclamação da República.
“Fragilizada na Europa, e buscando legitimar uma política centralizada em Roma, a Igreja elegera a América Latina, colonizada por dois países católicos, Espanha e Portugal, como um espaço de forte investimento. Já em 1858 fora fundado o Colégio Pio Latino-Americano de Roma, criado para formar quadros para os países de língua latina alinhados com os cânones romanos. No entanto, o ponto alto da investida constitui-se na convocação de todos os arcebispos e bispos do continente pelo papa Leão XIII para o Concílio Plenário da América Latina, celebrado na sede do papado no apagar das luzes do século XIX. Desse conclave, que reuniu 53 prelados, dos quais 11 brasileiros, emanaram as diretrizes para a ação da Igreja no século seguinte”, escreveu a pesquisadora.
Romanização e conservadorismo
A entrada das congregações católicas trouxe ao Brasil religiosos qualificados, provenientes principalmente da França e da Itália, que passaram a atuar em escolas, hospitais e imprensa. Na primeira etapa, que se estendeu da década de 1890 até a década de 1950, a Igreja, comprometida com o processo de romanização e o ideário conservador, empregou esses novos recursos humanos principalmente em sua própria estruturação. Assim, o número de dioceses, inferior a duas dezenas por ocasião da Proclamação da República, cresceu até chegar às 272 dioceses atuais .
“A preocupação de não mais se limitar a combater escritores laicos, ateus ou agnósticos, e sim produzir uma imprensa própria, constituída por livros, revistas e jornais com a mesma qualidade intelectual e gráfica dos produzidos pelas empresas laicas, levou a Igreja a incentivar a manifestação de escritores católicos. E esse movimento, no Brasil, foi capitaneado pelo grupo do Rio de Janeiro, que fundou, em 1921, a revista A Ordem, e, no ano seguinte, o Centro Dom Vital. Depois da morte acidental de Jackson de Figueiredo (1891 – 1928), criador dos dois projetos, o mais importante protagonismo intelectual desse grupo foi exercido por Alceu Amoroso Lima”, relatou Bittencourt.
A trajetória pessoal de Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983) é exemplar da trajetória coletiva do catolicismo brasileiro no século XX. Por isso, convém descrevê-la com maior detalhe. Filho de industrial e neto de aristocrata, formou-se em Direito no Rio de Janeiro e deu continuidade aos estudos na França, onde frequentou o curso ministrado pelo filósofo Henri Bergson (1859 – 1941) na Sorbonne. De volta ao Brasil, trabalhou como advogado, antes de assumir a direção jurídica de uma fábrica da família. Ao iniciar sua atuação na imprensa como crítico literário, em 1919, adotou o pseudônimo de Tristão de Athayde, para não confundir a atividade jornalística com a atividade empresarial.
Liberal em política e agnóstico em filosofia, Alceu converteu-se ao catolicismo em 1928, depois de uma intensa troca de ideias com Jackson de Figueiredo. Sua conversão teve grande repercussão tanto na esfera familiar quanto na esfera pública. No âmbito familiar, a principal consequência viria a ser, duas décadas mais tarde, o ingresso de sua filha Lia no monastério e na clausura. Nascida em 1929, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, Lia, com o nome religioso de madre Maria Teresa, tornou-se, aos 22 anos, monja enclausurada no mosteiro beneditino de Santa Maria, em São Paulo. No âmbito público, a intensa produção literária, jornalística e epistolar de Alceu constituiu-se no principal baluarte do pensamento católico no país.
No decurso de uma vida longa, ele redigiu quase uma centena de livros, um número incontável de artigos, publicados em periódicos como O Jornal, Diário de Notícias, Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, e manteve correspondência com alguns dos mais importantes intelectuais brasileiros. Para a filha enclausurada, escreveu quase diariamente, durante 30 anos, mantendo-a informada do que se passava no país.
“Até o final dos anos 1940, Alceu caracterizou-se por posições bastante conservadoras e chegou a simpatizar com a Ação Integralista Brasileira, embora não tenha participado dessa organização de inspiração fascista. Nesse período, engajou-se em causas como a indissolubilidade do casamento, a pluralidade sindical e o ensino religioso nas escolas públicas. Ao modelo de educação laica, pública e obrigatória, defendido por Anísio Teixeira, contrapôs a proposição de uma educação livre, de escolha da família. E, em oposição à Universidade do Distrito Federal (UDF), criada por Anísio Teixeira, empenhou-se na fundação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), a primeira das PUCs, cujo modelo inspiraria as demais, inclusive a de São Paulo”, disse a pesquisadora.
O grupo do Rio de Janeiro era liderado pelo cardeal Sebastião Leme (1882 – 1942) e, além de Alceu, reunia vários intelectuais influentes, como o padre Leonel Franca, o escritor Gustavo Corção, o jurista Sobral Pinto, entre outros. E incorporou, mais tarde, o então padre e futuro cardeal Hélder Câmara (1909 – 1999).
Catolicismo progressista
Uma forte inflexão, da direita para o centro e do centro para a esquerda, operou-se no meio intelectual católico brasileiro a partir da Segunda Guerra Mundial. “Durante a guerra, e especialmente no pós-guerra, ocorreu na Europa uma transformação profunda no pensamento e na prática dos religiosos. Foi um direcionamento para o trabalho no mundo, em prol da superação das desigualdades e da promoção da justiça social. Como reflexo disso, Alceu Amoroso Lima viveu uma espécie de segunda conversão durante os anos 1950, mudando de campo. De simpatizante do integralismo, tornou-se interlocutor do chamado catolicismo progressista. Foi um dos protagonistas do processo de renovação promovido pelo Concílio Vaticano II (1961 – 1965). E, após o golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart, em 1964, colocou-se abertamente no campo da oposição à ditadura civil-militar”, informou Bittencourt.
Ainda nos anos 1950, outra forte influência na renovação do catolicismo no país foi a do padre francês Louis-Joseph Lebret (1897 – 1966), criador do movimento “Economia e Humanismo”, como uma espécie de terceira via diante da dicotomia “capitalismo versus socialismo”. Lebret – que viria a ter mais tarde atuação decisiva no Concílio Vaticano II, participando da redação da constituição Gaudium et Spes (“Alegria e Esperança”) e da encíclica Populorum Progressio (“Do Progresso dos Povos”), proclamadas pelo papa Paulo VI (1897 –1978) – visitou várias vezes o Brasil, orientou pesquisas sobre as condições de vida nos bairros pobres de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife e formou jovens ativistas, como Plínio de Arruda Sampaio, Francisco Whitaker e outros, que compuseram uma espécie de ala esquerda do Partido Democrata Cristão.
“As atuações de Alceu e de Lebret visavam, cada qual a seu modo, a formação de uma elite intelectual progressista. A de Alceu priorizava o debate no campo literário e jornalístico. A de Lebret, uma capacitação técnica capaz de formar quadros altamente qualificados para assessorar os governos. Um ponto central enfatizado pelos dois protagonistas e seus seguidores foi o da produção bibliográfica. Isso levou à criação da Editora Agir no Rio de Janeiro e da Editora Duas Cidades em São Paulo. Pensadores fundamentais na renovação do catolicismo, como Emmanuel Mounier, Jacques Maritain e Teilhard de Chardin foram lidos e discutidos no período”, lembrou a pesquisadora.
Segundo ela, houve ainda um terceiro influxo, este dialogando diretamente com os segmentos populares. Foi o dos “padres operários”, que surgiram na Europa dos anos 1940 e chegaram ao Brasil nos anos 1950, principalmente por meio da ordem dominicana. Mas não se deve pensar que essa inflexão obteve unanimidade no corpo da Igreja Católica e em sua área de influência. Ao contrário, estas experimentaram uma forte polarização entre direita e esquerda nas décadas de 1940, 1950 e 1960. “Após a primeira visita do padre Lebret ao Brasil, em 1947, ele ficou cinco anos sem poder voltar, devido a gestões, junto ao Vaticano, dos arcebispos conservadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, Dom Jaime de Barros Câmara e Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, respectivamente. E Gustavo Corção, que fora introduzido no catolicismo por Alceu Amoroso Lima, tornou-se, depois, seu maior opositor, como um dos principais ideólogos do conservadorismo católico”, sublinhou Bittencourt.
“A transição que se operou desde o final do século XIX até o Concílio Vaticano II foi a formulação de um humanismo cristão, que trouxe a profissionalização e também a politização dos quadros da Igreja, possibilitando uma produção e apropriação do conhecimento científico. Principalmente os jesuítas e os dominicanos, mas não apenas eles, protagonizaram esse movimento. A opção pelo trabalho social levou esses religiosos a procurar entender as condições de geração da miséria na sociedade contemporânea. E isso os aproximou dos pensamentos marxista e anarquista. Tal análise foi demandada pelos próprios trabalhos de base, em movimentos como o dos padres operários, de formação de comunidades de base, de educação popular, de atuação no meio rural etc. E tudo isso acabaria levando, depois, à formulação da Teologia da Libertação”, concluiu a pesquisadora.
Esta notícia foi publicada no site Agência FAPESP em 01 de fevereiro de 2016. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade do seu autor.