Ensino Religioso
05/11/2018
'Youtubers' muçulmanas dão voz à religião e rompem com estereótipos e preconceito
Por Isabella Lima, Nathália Archanjo e Nathalia Perez* | G1Submissas aos maridos, obrigadas a usar véu, limitadas em seus direitos e reprimidas pela religião. Essas são algumas das características atribuídas às mulheres muçulmanas, sobretudo no Ocidente, que elas consideram estereotipadas. E são justamente esses rótulos e ideias em torno das islâmicas, e do islã em si, que youtubers devotas tentam derrubar no Brasil.
Mulheres como Fatima Cheaitou, do canal 'Fala, Fatuma', e Mag Halat, autora de um vlog homônimo, se propõem a romper com estereótipos, desmistificar o islamismo e, acima de tudo, explicar a religião sob uma perspectiva feminina, na maior plataforma de vídeos do mundo, o YouTube.
"A religião não me limita, ela me liberta. Sou livre para buscar o que eu quiser", afirma a estudante Fatima, de 20 anos. Com mais de 20 mil inscritos em seu canal, criado em outubro de 2016, a jovem conta que seu principal objetivo é mostrar o que prega o islã e como é ser uma mulher muçulmana.
Os seus vídeos tratam de questões como o uso do véu, a poligamia, o significado da morte e os ensinamentos do Ramadan, entre outros temas. Além disso, ela compartilha com o público sua experiência de como foi deixar o Brasil para ir viver no Líbano.
Além de abordar o islã em seu canal, Mag faz tutoriais de maquiagem — Foto: Arquivo Pessoal
Para Fatima - ou Fatuma, que é a variação de seu nome em árabe -, o islamismo é sua base e fundamento de vida. Levar conhecimento a outras pessoas sobre a fé é sua grande paixão. Ela acredita que "a desinformação e a distorção dos fatos" constroem uma imagem negativa das mulheres islâmicas no Ocidente.
Para a estudante, a imagem delas é projetada pela mídia a partir de culturas que reprimem a mulher, sem ter como base a religião. "Podem até falar que é em nome dos princípios islâmicos, mas não é. A mídia acaba associando cultura e religião, e por mais que sejam dois fatores que se completam muitas vezes, não podemos julgar o islã por conta de uma cultura específica", argumenta.
O canal da influenciadora digital e maquiadora Mag Halat, de 25 anos, não tem como foco só a informação sobre a religião islâmica. Formada em Arquitetura e Urbanismo, a youtuber não exerce a profissão, e se dedica quase que integralmente ao seu vlog, onde aborda, também, temas como beleza e culinária árabe.
"Meus vídeos com mais visualizações são aqueles em que mostro a cultura árabe e a religião islâmica. As pessoas têm muita curiosidade sobre esses temas", comenta Mag, que conta com mais de 80 mil inscritos em seu canal do YouTube.
Usar o hijab foi uma escolha pessoal de Mag, a única de sua família a utilizar o véu — Foto: Arquivo Pessoal
Realidades diferentes
"Quando se usa por amor, e não por obrigação, é muito diferente, porque se torna uma parte da gente. Se você parar para pensar nisso, então eu só sou livre quando mostro meu corpo?", questiona. Para Fatima, "a autonomia da mulher está na liberdade para realizar suas ações, expressar suas opiniões, ser capaz de ir atrás dos seus sonhos e ter independência para estudar e trabalhar, coisas que fazemos". Ela nega que o uso do véu seja uma forma de opressão.
A antropóloga Francirosy Campos, de 49 anos, pesquisa comunidades muçulmanas em São Paulo, e diz que a sociedade ocidental comprou a ideia de que as roupas das muçulmanas representam subjugação. Para ela, essa concepção está atrelada ao "etnocentrismo". "Vivemos, na verdade, realidades muito diferentes, e temos muita dificuldade de compreender essas diferenças sociais, de contextos religiosos. Para nós, tudo que é nosso é melhor, e tudo que não diz respeito a nós é ruim, opressor e primitivo".
Já Mag Halat diz que o uso do véu é a representação da fé. "Com ele, as pessoas sabem que sou muçulmana, onde quer que eu esteja. E as minhas atitudes podem ser julgadas diretamente como parte da religião", afirma.
Ela acredita que se tiver uma atitude errada ou negativa, as pessoas automaticamente vão associar isso ao fato de ela ser muçulmana, e que seu comportamento está ligado ao islã. "Não acho que o hijab seja algo ruim. Ele faz com que eu me lembre sempre da minha fé, e minhas atitudes devem condizer com ela".
Fatima: 'Ser uma mulher islâmica é libertador, as pessoas generalizam os muçulmanos, mas não somos oprimidas' — Foto: Arquivo Pessoal
Insultos
O canal e as redes sociais de Mag são acompanhados pela maquiadora libanesa Fawzya Orra, de 29 anos, que mora no litoral de São Paulo. Ela desembarcou no Brasil há dez anos e conta que, embora não tenha passado grandes dificuldades desde quando chegou ao país, já ouviu ofensas por ser islâmica. "Já me chamaram de mulher-bomba".
Fatima Cheaitou conta que também já foi alvo de preconceito, e recebeu insultos relacionados ao terrorismo. "Às vezes, eu atravessava a rua no Brasil e faziam barulho de bomba. Mas grande parte das vezes só foi uma encarada, uma cara feia. Nunca chegou a ser algo tão sério, nunca cheguei a sofrer violência", afirma.
Para Mag Halat, no começo era difícil lidar com os comentários preconceituosos que recebia em seu canal, mas hoje ela diz tentar não se abalar. "Eu realmente ficava muito triste, mas agora lido melhor com isso. Quando percebo que a pessoa comentou algo pejorativo por falta de conhecimento, procuro explicar sobre o assunto".
No entanto, esse esforço para esclarecer questões relacionadas à religião nem sempre funciona. "Recebo mensagens de ódio todos os dias, infelizmente. Algumas pessoas não entendem que posso ser brasileira e muçulmana ao mesmo tempo. Me mandam voltar para a minha terra e tirar esse pano da cabeça o tempo todo", conta.
Conhecimento
Fatima acredita que ter fé é importante, e explica que o Alcorão, o livro sagrado do islã, considera uma obrigação do ser humano buscar o conhecimento. De acordo com a fé islâmica, o homem é julgado pelo que sabe, e não deve viver na ignorância.
"Eu prefiro que as pessoas me vejam pela minha inteligência, porque é isso que o islã valoriza, que todos sejam vistos pela capacidade que possuem, e não apenas pela aparência", diz Fatima. A youtuber também conta que sua mãe e outras mulheres da família sempre a incentivaram a estudar e ser independente.
A pesquisadora Francirosy Campos explica que os muçulmanos só falam de assuntos que conhecem, e que têm cuidado com o que falam, principalmente sobre a religião. "No islamismo, há hádices [coleção de episódios sobre a vida de Maomé] que dizem que a pessoa será julgada por aquilo que disse, desorientou ou ensinou errado. Então, se um muçulmano ensina algo que não é da religião porque não tem conhecimento suficiente, acaba induzindo os outros a erro, o que é muito prejudicial ao islamismo e aos que o praticam".
Francirosy também elogia o trabalho das youtubers muçulmanas. Para ela, essa atuação na internet é "uma forma de divulgar a religião". Ela argumenta que o islã "é um código de vida com regras claras, que englobam tanto os homens quanto as mulheres, e não há nada na religião que restrinja o gênero feminino".
Ela diz, ainda, que o islamismo garante à mulher o direito ao voto, ao divórcio, à escolha do marido e à herança. Também lembra que, desde o século VII, o islã autoriza as muçulmanas a votarem, um direito que só foi conquistado no século passado em boa parte dos países ocidentais.
*Sob supervisão de Ivair Vieira Jr, do G1 Santos
Esta notícia foi publicada no site G1 em 27 de outubro de 2018. Todas as informações nela presentes são de responsabilidade das autoras.