Ensino Religioso
21/07/2008
'A tecnologia acaba forçando revisão de crenças religiosas’
Ricardo Muniz, de O Estado de S. PauloSÃO PAULO - Para o rabino americano Richard Address, longe de representar uma dor de cabeça monumental para os religiosos, os recentes avanços conquistados pela biomedicina, ainda que tragam a reboque intermináveis e complexos debates éticos, são uma “bênção”.
Diretor da União pelo Judaísmo Reformado, com sede em Nova York, Address foi um dos palestrantes da 3ª Conferência das Comunidades Judaicas da América Latina, promovida entre 10 e 13 de julho no Rio pela União Mundial do Judaísmo Progressista (WUPJ, na sigla em inglês), entidade que reúne 1,2 mil congregações e 1,7 milhão de membros em 42 países.
No painel sobre bioética, o último do encontro realizado no Hotel Othon de Copacabana, Address recorreu aos ensinamentos de Moisés Maimônides, filósofo, rabino e médico nascido em Córdoba, Espanha, em 1135. Entre os ensaios médicos e religiosos escritos pelo mestre, lê-se: “Não há limites para o aprendizado da medicina” (A Prece do Médico), e “Deve-se buscar saúde e vigor físico a fim de que a alma esteja aprumada, em condição de conhecer Deus” (Mishná Torá ou A Repetição da Lei). Esses e outros ensinamentos da tradição judaica, diz Address, indicam um consenso: “O médico é parceiro de Deus, pois quem está doente não pode aprender.”
Ao lado de Address, o rabino argentino Fabian Zaidemberg concordava: “Na religião, o comum é sempre procurar em primeiro lugar um ‘não’ para cada desafio, mas precisamos repensar verdades repetidas centenas de vezes antes que se tornem mentiras. Nossa obrigação é aplaudir qualquer avanço científico.”
A seguir, leia trechos da entrevista concedida por Address ao Estado, logo depois do encerramento do congresso, em que falou sobre aborto, os desafios que a tecnologia impõe à religião e a interpretação moderna dos textos sagrados milenares.
Qual é a justificativa para que se permita o aborto nos textos sagrados do judaísmo?
Com algumas discordâncias entre as várias correntes, porém mesmo na tradição mais conservadora ou fundamentalista, há uma aceitação de certos tipos de aborto, especialmente quando há uma ameaça direta à vida da mãe. Isso é alicerçado principalmente em dois textos, um do livro de Êxodo (capítulo 21, versos 18 e 19), e o outro da Mishná (compilação de doutrina e “jurisprudência” do judaísmo, elaborada pelo rabino Yehuda ha-Nassi por volta do ano 200 da era cristã). O texto da Mishná diz que, se uma mulher tem problemas quando já está em trabalho de parto, é permissível que se termine aquela gravidez, desde que a maior parte daquela criança não tenha saído do corpo da mulher (quando os pés do bebê saem primeiro) ou então a cabeça, porque no mundo antigo se definia morte pela incapacidade de respirar, já que não havia tecnologia para defini-la precisamente. Satisfeitas essas condições, então, é admissível encerrar a gravidez, porque há uma ameaça à vida da mãe. Mesmo no judaísmo ortodoxo, esse conceito de ameaça à vida da mãe foi expandido para incluir alguns aspectos de saúde mental, de bem-estar psicológico da mãe.
No judaísmo progressista o entendimento é similar?
No movimento que eu represento houve uma interpretação ainda mais elástica do que significa ameaça à vida da mãe. Trata-se de um posicionamento que tem sido revisado ainda hoje, constantemente, mas se você me pergunta se o judaísmo progressista aceita o direito de escolha da mulher e se tem uma interpretação mais abrangente da prerrogativa da mulher de encerrar uma gravidez, a resposta é sim, com base numa compreensão ampla do que seja “ameaça à vida da mulher”. Há um contínuo debate em torno disso, porque agora a tecnologia médica tornou possível, já no primeiro trimestre de gravidez, identificar com precisão se a criança tem alguma grave deformidade genética. A ciência médica tornou possível a um casal decidir, caso o filho tenha malformação severa, se interrompe a gravidez e tenta de novo. A maioria dos rabinos considera que se trata de uma razão muito válida para interromper uma gravidez. Paralelamente, há uma preocupação cada vez maior de nossa parte, como rabinos, de aconselhar jovens casais, ainda antes do casamento, que busquem garantias, fazendo exames, já que existe uma ampla gama de testes genéticos à disposição. Quanto mais informação você reúne, melhores serão as condições para que você decida se - Deus não permita - alguma coisa der errado.
A tecnologia força a religião a revisar suas crenças?
A tecnologia é como um prédio, e se você adentra nesse prédio, há muitas portas. Ela tornou possível, e em muitos sentidos acabou forçando, de fato, a religião a examinar diferentes possibilidades de abordagem da verdade. Por isso é importante que rabinos, congregações, todas as denominações religiosas ensinem o que nossas tradições têm a dizer em face dos avanços da tecnologia médica. É importante que os membros das congregações conheçam e entendam esses avanços. E é fundamental que, se tiverem de tomar uma decisão, sua fé tenha algo a dizer para guiá-los.
Como você avalia a posição da Igreja Católica contra o aborto e a pesquisa com células-tronco embrionárias?
Obviamente nós encaramos essas questões de forma muito distinta. A posição católica clássica é que a vida começa na concepção. Na tradição judaica, há estágios de desenvolvimento do feto, e certas coisas podem ser feitas, outras não, dependendo de qual é o estágio. Nos primeiros 40 dias de desenvolvimento, o judaísmo considera o que está se formando como “água”, não há desenvolvimento real de qualquer coisa, então é permitido usar esse material para pesquisa, pois não é uma vida humana. A questão abordada no livro de Êxodo, que mencionei há pouco é: se ocorre uma luta entre dois homens e uma mulher grávida é atingida acidentalmente e perde o bebê, o agressor é culpado de homicídio? E a resposta da tradição é não, porque não há “nefesh” (palavra hebraica para “ser humano”), trata-se de vida em potencial. A partir disso, desenvolveu-se a compreensão de que, se há problema na gravidez, a vida da mãe tem, sempre, precedência.
Qual é a origem e a proposta do judaísmo progressista?
Esse movimento tem suas origens na Alemanha, no Pós-Iluminismo, e é resultado da turbulência política e intelectual na Europa dos séculos 17 e 18, quando houve um senso de maior liberdade e os judeus emergiram politicamente buscando seu papel na sociedade secular. O tema da coexistência passou a ter predominância. A base do judaísmo progressista é a forma como encara o texto sagrado, especialmente os cinco primeiros livros da Bíblia, que o judaísmo chama de Torá, a parte mais sagrada. No judaísmo tradicional, a Torá é vista como dada por Deus a Moisés, no Monte Sinai, em um ato de revelação. Já os modernistas, recorrendo à crítica textual, à lingüística, entenderam que os textos evoluíram por séculos, foram escritos por indivíduos, readaptados e consolidados.
Essa compreensão transforma o judaísmo, porque se você tem um texto sagrado e o autor é Deus, em um ato de revelação, então a autoridade para suas ações é Deus. Mas se os mesmos textos foram escritos por gente como eu e você, refletindo seu contexto social, econômico, político e religioso à medida que foram sendo escritos, então a autoridade para o que você faz emerge do consenso da comunidade, e não de um ser sobrenatural. É uma abordagem muito, muito diferente. Esse é o alicerce teológico desse judaísmo fluido, aberto à mudança e baseado na compreensão de que só sobreviveu adaptando-se às culturas, e em certos momentos até mesmo inovando aspectos da crença. É uma preservação dialética. Há uma tensão, e o desafio é negociar essa tensão entre a convicção religiosa e a realidade da vida.